domingo, 15 de dezembro de 2013

Erro do médico, da medicina ou do sistema?

Entre várias notícias na área de saúde da última semana, uma em particular me chamou a atenção. Um cirurgião daqui de Recife foi indiciado por homicídio culposo, acusado de negligência. Sua paciente apresentou um tromboembolismo pulmonar após uma cirurgia de redução do estômago e morreu. A conclusão do inquérito foi que os sintomas do quadro foram erroneamente interpretados como manifestações de ansiedade por parte da paciente. (mais informações AQUI)

A mídia vai discutir se ele errou mesmo ou não. Para acusá-lo, podem apontar que a paciente engordou mais de 10 kg no período pós-operatório, ou que a paciente não preenchia totalmente os critérios de indicação da cirurgia (um médico fez estas colocações AQUI) ou podem questionar a resistência do hospital em liberar o prontuário médico durante as investigações (relatada no link do parágrafo anterior). Mas tem outra discussão aqui: o médico pode errar?

Uma pílula de anticoncepcional combinada (as mais usadas) funcionam em 99,9% das pessoas em teoria, e na prática sua segurança chega a pelo menos 97%. Ou seja, ela pode errar, e ninguém processa laboratórios por falhas (a não ser quando eles vendem pílulas de farinha por engano, mas isso é exceção).

A mamografia como exame de rastreamento para o câncer de mama aponta falsos-positivos (ou seja, exames alterados sem existir doença) em 50% dos casos. Isso mesmo, metade. E alguém conhece algum processo contra o fabricante do aparelho ou mesmo contra o responsável pelo laudo do exame por um falso-positivo?

A questão é a seguinte: não existem procedimentos absolutamente seguros na medicina. Tudo o que fazemos oferece riscos às pessoas. Ao que parece, as pessoas aceitam correr determinados riscos se a compensação for boa, como um tratamento empírico para uma cistite (sem a realização de uma cultura de urina com antibiograma), ou o uso de um medicamento antihipertensivo pelo resto da vida para prevenir um infarto ou AVC. Há pessoas que aceitam riscos maiores, como usar um medicamento para baixar o colesterol ou tomar uma vacina contra o HPV. A pergunta que fica é: as pessoas têm noção dos riscos envolvidos em cada procedimento? Ao que parece, não.

O aumento voluntário do peso para se enquadrar no índice de massa corporal que permite a cirurgia AUMENTA a probabilidade de surgimento de complicações. Será que a paciente estava esclarecida sobre isso?

Complicações como o tromboembolismo pulmonar podem acontecer em qualquer pessoa que se submeta a um procedimento desses. Segundo o médico em seu depoimento à polícia, a paciente estava ciente disso. O que significa estar ciente? Saber que pode acontecer? Entender as probabilidades do evento? Aceitar voluntariamente o risco após compreendê-lo?

Em resumo, é preciso rediscutir as responsabilidades dos médicos e das pessoas que os procuram em relação aos malefícios induzidos por condutas médicas. Se complicações forem sempre tratadas como erros, significa que médicos não podem ter complicações ou serão processados e até condenados por isso, e a sociedade vai ter que se preparar para o american way of health care, com cuidados médicos caríssimos para compensar o pagamento de seguros por médicos e as indenizações por complicações de seus atos consequentes de uma sociedade altamente "judicializada". Se por outro lado, a responsabilidade for simplesmente jogada na mão das pessoas (por exemplo, assinando um "termo de consentimento" qualquer), os médicos poderão sim se tornar mais negligentes, pois a responsabilidade deles diminui. Precisamos achar um meio termo, onde respeitemos os princípios éticos da profissão: propor medidas que façam o máximo de bem e o mínimo de mal às pessoas, e a partir da proposição fornecer o máximo de informações para que a pessoa tenha autonomia de verdade para escolher quais os riscos que está disposta a correr. E isso só vai acontecer com muito estudo e preparo por parte dos médicos, e de cuidados prestados ao longo do tempo, permitindo mais vínculo entre o médico e a pessoa e consequentemente uma maior compreensão mútua, fruto acima de tudo de muita conversa.

quinta-feira, 21 de novembro de 2013

Carta à filha

Filha,

Queria começar dizendo que você não tem que pedir desculpas por nada. Quem errou não foi você, foi aquele babaca que achou que seria mais homem expondo você num momento que só dizia respeito a vocês dois.

Quer dizer, você pode ter feito uma escolha errada, mas a gente escolhe pessoas erradas o tempo todo. Não se culpe por isso. Você não escolhe pior do que ninguém na sua idade. Só teve azar do cara ser mais babaca do que a média costuma ser.

Dito isso, queria dizer que você não devia ter vergonha de ter sido exposta fazendo sexo com seu ex-namorado. A maioria das pessoas na sua idade faz, acredite em mim. Quase todas as meninas que apontaram o dedo pra você, te chamando de vagabunda ou coisas do tipo, fazem exatamente a mesma coisa que aparece no vídeo. A diferença é que elas são hipócritas. De repente, até você poderia se comportar da mesma maneira, se fosse uma delas a vítima de um babaca. Julgar as pessoas faz parte de nossa natureza. Uma natureza cruel essa nossa, mas é real.

Quanto a mim e à sua mãe, não se preocupe com a gente. Pra mim não importa se vou descobrir que alguns babacas que eu achava que eram amigos resolveram apontar o dedo pra você, ou pra mim. No fim das contas a utilidade deste tipo de situação é exatamente derrubar a máscara destes idiotas, e colocar-nos num caminho diferente do deles daqui por diante. Sua mãe pensa igual, pode acreditar.

E acredite sim, a gente não se importa com o fato de você fazer sexo com seu namorado aos 17, porque quando tínhamos 17 nós fazíamos a mesma coisa, e lembramos como era ficar se escondendo pra fazer isso. Era angustiante, mas era gostoso, e a gente sabe que viver isso é importante pra você se descobrir, descobrir o que gosta e o que não gosta, e com quem gosta. Pra gente o que importa é que o sexo seja seguro e gostoso. Infelizmente, pra você, acabou não sendo.

Sabe o que mais entristece a gente agora? Sabe o que nos frustra mais? Saber que você não vai ler isso. Porque você se enforcou hoje pela manhã. E estava tão assustada com isso, e tão preocupada com a gente, que fez questão de noticiar isso nas redes sociais e naquela carta que estava em cima do seu travesseiro. E a gente não conseguiu te confortar porque nem deu tempo. Porque se eu tivesse visto a porcaria das fotos antes de ver você pendurada no banheiro, não teria deixado você a sós.

Tudo o que a gente queria era te colocar no colo agora e dizer que a gente ficaria junto e faria o que fosse necessário pra te devolver a alegria de volta. A gente mudaria de rua, de escola, de trabalho, de bairro, de cidade, de país. Porque nada é mais importante pra gente do que estar juntos. E perdemos isso.

Nessas horas seria muito reconfortante acreditar que você foi para um lugar melhor, coisa e tal. O fato é que infelizmente, eu sei que não foi. Porque não existe lugar melhor pra você do que na nossa casa, com a gente. E só ficaram as fotos.

segunda-feira, 18 de novembro de 2013

As pessoas e os protocolos

Domingo à noite, umas 20h. Entrada na urgência de um hospital privado superbonito, novinho. Acompanho minha mãe, com câncer em tratamento, chorando de dor. Deixo ela sentada e vou à recepção.

- Boa noite.
- (Recepcionista)Boa noite, senhor.
- Você pode me dar uma senha de atendimento?
- Claro!
(dá a senha)
- Opa. Ela tem 60 anos, é senha preferencial, né?
- É. Vou trocar.
(troca a senha)
----------------------
(painel chama a senha. Entramos na sala do enfermeiro da triagem/classificação de risco)
- Boa noite.
- (Enfermeiro) Boa noite. O que houve?
- Ela tá com muita dor.
- Onde dói?
- Ela tem câncer, tá com dores há alguns dias e o analgésico não tá dando conta.
- Ok. É diabética?
(enquanto isso, um técnico afere a pressão e mede a saturação de oxigênio)
- Não. É hipertensa. Mas tá controlada, toma os remédios.
(pressão deu 150 x 90)
- Tá alta a pressão.
- Então, como eu falei, ela tá com muita dor. Deve ser por isso que a pressão subiu.
- Ok. (pega uma pulseira verde e coloca no braço dela). É só aguardar lá fora, certo?
- Mas você classificou ela como verde? E a dor? Você nem aplicou régua de dor pra avaliar! Como classificar como verde? É isso mesmo?
- (Tom arrogante) É isso mesmo. Aguardem lá fora, por favor.
-----------------------
(Dois minutos. Recepcionista chama para fazer o cadastro)
- Opa. Aqui, os documentos.
- Pois não. Olha, deixa eu te avisar que o atendimento está demorando porque só tem um clínico atendendo.
- Certo. Vê, ela tá com muita dor. O enfermeiro classificou como verde mas eu conheço o protocolo e sei que tá errado. Ela não vai aguentar esperar, tá chorando de dor ali. Ela tem câncer, tu sabe como são essas dores.
- Nossa. Ela não devia nem esperar aqui, o enfermeiro devia ter colocado ela lá dentro (na sala onde ficam os leitos de observação). Fulana, quem é o enfermeiro de hoje, é "fulano"?
(a colega da recepção confirma. Minha interlocutora faz um sinal de reprovação balançando a cabeça)
Faz assim, se demorar muito o senhor fala com ele novamente.
- Ok. Vou esperar um pouco.
-----------------------
(Cinco minutos. Uma lágrima de dor. Vou à recepção novamente).
- Olha, eu vou entrar pra falar com o enfermeiro, tá? A bichinha tá mal, olha.
- Pode entrar, fale mesmo!
(a colega informa que ele não está na sala)
- E aí? Eu preciso que ele mude a classificação.
- Pode ir lá dentro, senhor.
-----------------------
- (Vigilante) Pois não.
- Então, eu preciso falar com o enfermeiro mas ele não está na sala dele. A recepcionista autorizou minha entrada.
- Tudo bem. Ele tá naquela sala ali, pode bater lá.
(Bato na porta. Tento abrir. Trancada)
- Tá trancada a porta, véio.
- Oxe...ele deve ter ido jantar então.
- Tudo bem. Vê, eu entendo que ele tem o horário dele pra comer. Mas eu preciso falar com alguém que resolva meu problema (e conto o problema mais uma vez).
- Certo. Bora ali que tu fala com a enfermeira da observação.
-----------------------
- Com licença, boa noite.
- (Enfermeira da observação). Boa noite.
- Olha, (e descrevo o problema da minha mãe e o que aconteceu no primeiro atendimento). Não dá pra esperar.
- Claro que não! Ela nem devia estar lá fora! Quem tá lá na frente, "sicrana"?
(Sicrana responde: É "fulano", e não parece muito empolgada ao mencioná-lo)
- (com ar de reprovação) Ok senhor, pode pedir ao maqueiro pra trazê-la pra cá, ok?
- Ok. Muito obrigado.
(daí pra frente: médica chegou rapidinho, atendeu, medicou, a dor passou, fomos pra casa)

-------------------------------------------------------------------
Isso foi ontem. "Fulano" retardou em pelo menos 20 minutos o atendimento a uma pessoa que estava chorando de dor, mesmo sendo avisado que seu procedimento estava errado.

Aconteceu num hospital privado. Novinho em folha. Chique no último. Nem tava tão cheia a urgência.

Aí eu te pergunto: qual o problema do sistema de saúde desse país? Quando foi que a gente começou a formar gente tão despreparada pra fazer uma coisa tão simples quanto aplicar um protocolo? Qualquer idiota consegue. Quer dizer, nem todos. Aquele idiota não.

Quando foi que alguns profissionais de saúde ficaram frios ao ponto de ignorar o sofrimento alheio em nome da preguiça?

Como dizia um amigo meu, "a sorte do SUS no Brasil é que o setor privado tem os mesmos problemas".

quarta-feira, 11 de setembro de 2013

Betânia espera

Betânia tem 48 anos. Está casada há 25 anos com Nelson. O casamento não foi planejado, e sim arrumado às pressas quando Betânia engravidou. Você sabe, a tradicional família nordestina não aceitava mães solteiras há 25 anos. Mas não tinha problema, pois Betânia gostava de Nelson. Veio o primeiro filho. Três anos depois, veio o segundo. O casamento andando, naquele piloto automático, mas Betânia gostava de Nelson.
Dez anos atrás, Nelson foi convidado pela empresa a assumir um posto de trabalho em São Paulo. Teria que se mudar. Combinou com Betânia que iria na frente, pra ver se dava certo, e depois a família iria ao seu encontro. Nelson voltava de férias, visitava a família, e com o passar do tempo passou a falar menos na ida da família. Até que parou de falar. Nelson ainda volta, uma vez no ano, pra visitar Betânia e os filhos. Passa um mês por aqui. E ninguém tem coragem de perguntar a Nelson sobre a ida da família ou sobre o emprego ou sobre qualquer coisa relacionada a São Paulo.
As pessoas comentam. Ele deve ter uma outra família lá, dizem. Os filhos aqui, já crescidos, tocaram a vida. Faculdade, emprego, conheceram pessoas, casaram. Betânia acompanhou tudo, segurava a barra. Nelson...bem, Nelson mandava dinheiro. "Você quer mais o que?", disse ele uma vez, lá atrás, quando Betânia cobrou sua presença na vida da família. O fato é que os filhos agora nem iriam mais para São Paulo, e na verdade nem se importam muito com Nelson. Mas Betânia...
Ela aparenta não se importar. Pra quem pergunta se é casada, responde "sou, mas ele trabalha em outra cidade". Simples assim. O fato é que não é tão simples. Betânia é uma pessoa triste. Ela não sabe bem se a tristeza é porque Nelson está longe, porque na verdade mesmo quando ele está aqui ela também se incomoda pois ele fica controlando onde ela vai, com quem vai, a que horas vai, e quando está em São Paulo ela fica mais livre. Talvez ela seja triste porque o casamento idealizado não deu certo. Sente que perdeu tempo, que deixou a vida passar. Sentir que perdeu tempo da vida pode ser muito angustiante. Pode ser também que ela seja triste por causa da possibilidade de Nelson ter outra família. Diz que nunca cogitou tentar descobrir a verdade, afinal de contas " o que os olhos não vêem, o coração não sente". Será mesmo que não sente? Ela também não sabe. Ou sabe.
Betânia está presa. Ela sabe disso, mas não fala no assunto. Está aprisionada por seus valores morais, de influência religiosa, que dizem que o casamento deve ser mantido de todo jeito. Mas esta não é a única prisão. Betânia está presa a sua esperança de que um dia Nelson diga a ela que arrume as malas pois ele está pronto para recebê-la em São Paulo. Dizem que a esperança liberta, mas a esperança também pode prender. E um sinal de que ela está presa é que ela não dorme. Aliás, dorme, mas com a ajuda de comprimidos. Todo dia, toma um e apaga. Melhor do que ficar acordada pensando nisso tudo.

E aí, prescrevo os comprimidos ou não?



(*a história é real, os nomes são fictícios, os locais também)

sábado, 24 de agosto de 2013

Carta a um médico estrangeiro

Olá, colega. Seja bem-vindo.

Soube que vocês andam preocupados com a recepção que terão por parte de nós, médicos brasileiros.

Imagino que vocês saibam que o Brasil é um país que sempre recebe bem os que buscam contribuir com nossa sociedade. Os japoneses, italianos, alemães, libaneses, entre outras nacionalidades que compõem nossa sociedade podem testemunhar a nosso favor. Não temos conflitos internos que envolvam grupos étnicos, não nos envolvemos em conflitos externos e jamais fomos xenófobos. Pelo contrário. Então fiquem tranquilos, o povo brasileiro os receberá muito bem.

Talvez minha fala não seja muito convincente quando comparada com o que as entidades médicas brasileiras têm dito sobre vocês. Saibam que a maioria dos brasileiros, e arrisco dizer, a maioria dos médicos discordam disso tudo. Não queremos conflitos com vocês. Sabemos que vêm em paz, com o objetivo de trabalhar, e tenho certeza que estarão seguros e tranquilos, no que depender das pessoas que estarão com vocês.

Mas acho que vocês precisam entender o que está acontecendo no Brasil neste momento. Até para poderem contribuir de verdade com as mudanças sociais que nosso país precisa.

A Atenção Primária, (que aqui no Brasil é mais conhecida por Atenção Básica) nunca foi prioridade de governante algum neste país. Por mais que tenhamos observado uma expansão importante da rede de serviços de Atenção Primária nos últimos 20 anos, o Sistema Único de Saúde (SUS) ainda não consegue cobrir nem metade da população brasileira com estes serviços. Isso acontece porque ainda não conseguimos vencer o debate sobre qual a melhor forma de organizar o SUS. Neste debate, entra a discussão sobre a necessidade de mais médicos, e aqui vale apontar alguns de nossos problemas:

1) Sub-financiamento: o Brasil investe, per capita, bem menos que a grande maioria dos países que assumiram o desafio de ter um sistema de saúde de acesso universal). Além de termos pouco dinheiro, pouco dele vai para a Atenção Primária (menos de 10% dos investimentos estatais em saúde);
2) Contratação descentralizada: o Brasil tem 5.560 municípios, e cada um deles precisa desenvolver sua estratégia para atrair bons profissionais, o que gera uma atmosfera que ultrapassa a competição saudável e atinge padrões predatórios, onde quase sempre quem perde é a população;
3) Falta de profissionais médicos, em termos quantitativos e qualitativos: embora estudos mostrem que em duas ou três décadas atingiremos um bom número proporcional de médicos, até lá lidamos com a falta de profissionais mesmo nos grandes centros urbanos. Além disso, não há uma política de estado que direcione a nossa formação para as áreas que mais precisamos, o que piora a distorção;
4) Estrutura precária de trabalho: por não ser prioridade, a Atenção Primária nunca recebe os investimentos necessários para que possa oferecer condições adequadas de trabalho. Lidamos o tempo todo com falta de medicamentos (na unidade de saúde onde trabalho falta Enalapril e Ibuprofeno há quase dois meses, só para citar dois exemplos), de exames (um relato: com frequência o laboratório “esquece” de dosar a hemoglobina glicada das pessoas com diabetes que fazem exames, e só manda os outros resultados) e de consultas com outros especialistas (uma consulta com um cirurgião-geral para resolver uma hérnia inguinal demora cerca de 4 meses, por exemplo).
5) Não existem estratégias de fixação de profissionais nos centros mais afastados: a única iniciativa do estado brasileiro nos últimos 20 anos foi exatamente o programa que trouxe vocês, e sabemos bem que não é suficiente para fixá-los aqui.

A maior parte dos brasileiros que critica a vinda de vocês não é contrária exatamente a vocês, e sim a vinda de vocês sem que sejam dadas as respostas a estes problemas que menciono acima. Vocês são a resposta que pode se aplicar a curto prazo, mas nada além disso. Nem nós, nem vocês conseguirão oferecer a medicina que a população brasileira merece e precisa sem estas respostas. Louvamos a sua disponibilidade em tentar, e esperamos profundamente que consigam alguma coisa. Caso consigam desenvolver uma medicina de qualidade neste cenário ficaremos felizes em aprender a fórmula mágica.

Uma outra crítica que vocês poderão ouvir é em relação ao fato de não terem seus diplomas revalidados. Saibam que o argumento do governo brasileiro é que não vão revalidar seus diplomas exatamente para poder mantê-los “presos” aos municípios que vocês escolheram para trabalhar. Não me parece a estratégia que mais valoriza a autonomia das pessoas, mas se vocês concordam trabalhar nestas condições não cabe a mim julgá-los. Eu não trabalharia, mas enfim.

E se você é cubano e já tem alguma experiência em outros países (como o governo brasileiro tem dito que vocês tem), imagino que já esteja acostumado com o desconhecimento que o mundo tem da realidade cubana. Temos ainda uma polarização ideológica no Brasil que envolve segmentos que louvam a "Revolução Cubana" e outros que demonizam a "Ditadura Cubana". Eu e a maioria dos brasileiros estamos no meio destes dois pólos. Me preocupo com alguns relatos de pessoas confiáveis que viram a realidade de vocês em seu país, mas sei que não existe relato isento e me reservo a não julgar o que acontece com vocês neste momento. Saibam que se fizerem um bom trabalho, vocês serão louvados. Mas atentem para a responsabilidade, pois neste momento muita gente estará torcendo para que vocês façam bobagem para ganhar a mídia dizendo “eu não disse que os cubanos não servem?”. Esta perseguição não é pessoal, mas ideológica, e tende a se acentuar considerando que temos eleições presidenciais ano que vem no Brasil. Desejo serenidade a vocês, e boa sorte.

Termino por aqui. Acima de qualquer coisa está o novo povo, e já que foi esse o caminho escolhido pelo governo brasileiro e por vocês, torço do fundo do coração que vocês consigam ajudar este povo. O debate político continuará, e estará observando vocês de perto. Boa sorte.

segunda-feira, 29 de julho de 2013

Fragmentos do drama obstétrico brasileiro. Baseado em fatos reais.

Cena 1:

Descrição: um casal chega a uma maternidade privada brasileira para o parto do seu bebê. É madrugada, não há ninguém na recepção exceto a recepcionista, que os recebe de forma bastante simpática e começa a conversa padrão, solicitando documentos, dados, etc. Até que...

- E quanto tempo de gestação ela tem?
- 39 semanas e 5 dias...quase 40 semanas já.
- Nossa...que estranho...difícil chegar gente que esperou tanto para o parto.

Cena 2:

Descrição: o casal está sendo atendido pelo obstetra de plantão.

- Boa noite. O que houve?
- Ela perdeu muco durante o dia, e tá perdendo líquido há algumas horas. Não é muito, mas também não é pouco.
- Ok. Quantas semanas?
- 39. Quase 40.
- Vocês querem parto normal?
- Não, a gente sabe que vai ser cesariana por causa das duas anteriores.
- E por que esperaram tanto? Não conseguiram agendar?

Cena 3:

Descrição: o mesmo atendimento, só que agora no exame físico.

- Ok, vamos ver...é, a bolsa não rompeu, mas tem 4 cm de dilatação. Vocês não sente dor nenhuma?
- Não. Sentindo nada.
- É, esse é o problema de esperar muito sabendo que vai ser cesariana...acaba entrando em trabalho de parto.

Cena 4:

Descrição: bloco obstétrico, durante a realização do parto. Cesariana.

- Olha! Líquido amniótico limpinho, com grumos. Tudo ótimo! Nada como esperar pra ter a bebê quando ela está madurinha, quando ela escolhe nascer, né?
- (sorriso)

quinta-feira, 18 de julho de 2013

Uma imagem

Há alguns dias eu recebi um fotógrafo de um jornal de Recife pra fazer umas fotos minhas. Era uma matéria sobre a chegada de médicos estrangeiros, e fui um dos entrevistados. A entrevista acabou incluindo algumas perguntas sobre a minha opção pela medicina de família, e enfim, o camarada veio aqui obter imagens para ilustrar a matéria.
Antes de fazer as fotos acabamos conversando um pouco sobre o tema da matéria, acho que os fotógrafos fazem isso pra tentar captar o clima, sei lá. Eu adoro falar, ainda mais sobre esses assuntos e ainda mais pra quem se interessa em ouvir, e a conversa foi bastante interessante, até que fomos para as fotos.
"O senhor não vai colocar a bata?", perguntou o fotógrafo. Eu ri meio sem jeito, e disse a ele que não costumava usar bata no consultório a não ser que fosse necessário, ao realizar um procedimento ou coisa do tipo. Expliquei que a bata (aos de outras regiões que possam estar lendo isso, "bata" é igual a "jaleco", tá?) era um item de proteção, de segurança contra fluidos, líquidos, enfim, e que eu usava na urgência, não no consultório. Eu acho que não usar a bata acaba me aproximando mais das pessoas que me procuram, pois elimina aquela barreira branca imaculada que pretende me dar uma aura que eu provavelmente nem mereço. Bem, pra fechar, eu disse que se ele queria um registro fiel meu, que me fotografasse sem bata.
"Ok, entendo, tudo bem...então vamos lá: eu vou fotografar quando o senhor aferir a pressão dela (tinha uma paciente na sala, que havia autorizado o registro), tudo bem?"

Lá vou eu.

"Não. Tudo bem nada. Vê só, eu passo em torno de 15 a 20 minutos com uma pessoa no consultório. Aferir a pressão é uma coisa que eu não faço com todo mundo, só quando precisa, e isso me toma menos de um minuto. A parte mais importante da minha consulta é ouvir a pessoa, é tentar entender exatamente o que a traz aqui e o que eu posso fazer por ela. Se tu quer um registro meu que seja fiel à realidade, fotografa a gente conversando!"

Eu sei. Eu sou um chato às vezes. Mas é que haja paciência com aquela mesma foto de um atendimento que sempre tem que envolver a aferição da pressão, ou a ausculta cardíaca, ou uma verificação do reflexo patelar (aquele martelinho no joelho). Por que raios a mídia sempre caracteriza a gente como realizadores destes procedimentos, se eles não são a parte mais importante da consulta? Isso acaba alimentando continuamente a visão do médico que tem que focar nos procedimentos, nos exames, nos medicamentos.

Por fim, depois desses discurso chatérrimo o fotógrafo me propôs uma nova cena: "Então a gente faz assim: eu coloco o aparelhando da pressão e seu estetoscópio em cima da mesa, paradinho aqui, e fotografo vocês conversando. Eu preciso disso pra caracterizar a imagem como sendo em um consultório. Se não for isso, como os leitores do jornal vão saber que estamos em um?"

Beleza. Assim vá lá que seja. Fizemos a foto, e de fato foi isso: se não fosse isso, não daria pra saber se estávamos num consultório ou num guichê do Detran.

Nos despedimos, o fotógrafo saiu satisfeito, gostou da conversa e da imagem, acho. A foto acabou sendo publicada mesmo.

E eu fiquei satisfeito também. Mas com uma pulga atrás da orelha: por que consultórios precisam ter aparelhinhos pra poder parecer com consultórios?


Em tempo: a foto está abaixo, saiu no JC de 30/06/13, e o crédito da imagem é de Bobby Fabisak, do JC Imagem, a quem agradeço a paciência comigo.


quinta-feira, 11 de julho de 2013

Eu, eu mesmo e as mudanças.

Hoje eu estava pensando em como a gente muda de opinião com o tempo. Estabeleci um dialogo imaginário comigo mesmo, só que era "eu" hoje com "eu" cinco anos atrás, e fiquei surpreso por discordar de boa parte do que eu fazia enquanto médico. O mais interessante foi constatar que eu discordo do que eu fazia, mas nem tanto assim dos princípios que levavam àqueles atos. A interpretação dos princípios e consequentemente a escolha dos caminhos é que mudou. Confuso? Eu também, garanto.

Em 2008 eu tinha concluído a residência em Saúde da Familia no IMIP (ainda era multiprofissional, e tinha esse nome) há pouco mais de um ano, e já atuava como médico concursado da prefeitura. Já tinha cerca de um ano na mesma unidade. Na época eu achava que o bom médico de familia era aquele que tinha uma boa formação em saúde pública, e que conhecia muito bem o território onde atuava, incluindo análise de indicadores de saúde, e que tentava fazer alguma coisa pelo maior número de pessoas possível. Embora já naquela época não trabalhasse com agenda em função de programas (os famosos "dias do hipertenso", "saúde da criança" e outras sandices, na opinião do "eu" atual), minha agenda ainda era bastante fechada. Atendia pacientes marcados, muitas vezes com uma ou duas semanas de antecedência, e investia muito tempo em monitoramento de indicadores da área: percentual de hipertensos acompanhados, de gestantes com pré-natal em dia, número de visitas realizadas pelos Agentes Comunitários de Saúde. Adorava protocolos clínicos. Achava que se eu controlasse bem as ações da equipe a gente poderia fazer mais coisas com os poucos recursos disponíveis na unidade de saúde.

Neste intervalo eu passei quatro anos na gestão pública, com a responsabilidade de avaliar/revisar/reformular/conduzir um programa que melhorasse a qualidade dos serviços de APS no estado. E pela primeira vez eu tive a noção de como dá trabalho ficar fazendo essas contas. Aliás, que dava trabalho eu sabia, mas pude dimensionar melhor como isso toma tempo. E como tem gente trabalhando na gestão que poderia fazer isso, deixando o tempo das equipes da saúde para fazer o que a população mais precisa: assistência. Nessa época, lembro de ver uma charge que colocava um médico de família numa bifurcação de uma estrada, onde havia uma placa que apontava para a clínica de um lado, e para a epidemiológica do outro, e sugerir que o camarada deveria se equilibrar entre os caminhos. No diz em que vi isso, um insight: impossível. Somos clínicos, ponto. Devemos conhecer o campo da epidemiologia, mas não nos ocuparmos dele.

Enquanto pensava nessas coisas, conheci gente que pensava diferente. Adotei a tática de ler as coisas contrárias ao que eu pensava. Das duas uma, ou eu mudaria de opinião ou pelo menos aprenderia bons argumentos para mantê-la. E deu muito certo, eu acho.

Hoje eu olho para o médico de familia que eu era há cinco anos e fico muito feliz em ter mudado muito. Atualmente eu penso que eu preciso conhecer as pessoas, não "o território". E que só posso conhecê-las se eu dedicar tempo para isso. E que só poderei dedicar mais tempo pra isso se ficar menos tempo preenchendo planilhas e calculando indicadores, menos tempo dando palestras, atividades em grupo onde as mesmas coisas são repetidas, e mais tempo no consultório, ouvindo, falando, revendo, estudando, pensando. Aprendi também que protocolos servem pra tentar trazer certeza a cenários incertos, e que eu quase nunca preciso das certezas "clinicas" quando eu consigo ouvir e responder aos anseios das pessoas. Resolver as incertezas tem sido mais útil para os anseios do médico do que para os pacientes, pelo menos no âmbito da atenção primária, e essa parece ser a nossa grande diferença, o que nos aproxima das pessoas. E isso é velho, não surgiu agora com o governo dizendo que precisa formar médicos "humanizados" (termo que eu odeio, do fundo do coração).

Na manhã de hoje eu fiz visitas. Fui ver uma senhora que não andava bem por dores crônicas no quadril, e consegui ensiná-la a usar uma muleta e assim conseguir andar um pouco melhor. Estava chovendo muito, e enquanto eu corria pro carro veio uma outra senhora, de guarda-chuva, dizendo que soube que eu estava ali e tinha vindo pra me dar um abraço porque depois de ter passado por muitos médicos, tinha sido eu o que tinha feito alguma coisa por ela pois agora ela se sentia melhor. Fui para a segunda visita, que não foi impedida pelo fato da pessoa a ser visitada estar dormindo, pois deu pra conversar com as filhas dela, sentir um pouco o clima da casa e como elas lidavam com a depressão da mãe (deflagrada pela perda do marido, há dois anos). No caminho resolvi visitar mais uma pessoa, uma mulher cujo marido tinha sido assassinado há um mês. Ela não tinha procurado ajuda, mas fui lá conversar um pouco e foi visível como ela se sentiu cuidada por isso. Tão pouco. Essa semana eu recebi uma mãe que perdeu seu bebê de 4 meses para uma doença que ela nem sabe qual foi. Passei quase uma hora conversando com ela, parecia ser o certo a fazer, e ela me disse uma coisa que não sai da minha cabeça até agora: "doutor, a gente tá acostumado a escolher uma roupa pro nosso filho pra passear com ele. Imagine o que é escolher uma roupa pra enterrar ele?". Chorei quieto, acho que ela nem notou (até porque chorava também, e não precisava se preocupar em ser discreta). Enquanto isso, na recepção as pessoas reclamavam por causa da demora no atendimento. Outro dia um cidadão, completamente bêbado, estava na mesma recepção reclamando porque eu tinha encaminhado ele ao cirurgião para operar sua hérnia inguinal há 3 meses, e a consulta ainda não tinha sido marcada. Chamei ele no consultório e fiquei ouvindo enquanto ele desabafava sobre a impossibilidade de trabalhar, sobre a dor, sobre a incapacidade do governo de organizar um sistema decente, um sistema que responda a uma coisa tão simples. E ele concluiu dizendo: "ainda bem que tem eleição ano que vem". Outro dia uma senhora que eu visitei me ofereceu um bolo de dinheiro em agradecimento ao meu trabalho, e recusá-lo gerou um problema no meu relacionamento com ela, que ficou ofendidíssima. Esse é o meu cotidiano, queridos leitores.

Há cinco anos eu teria atendido as mesmas pessoas, mas medicando, pedindo exames, medindo, fazendo contas, e quando o problema fosse o sistema e não meu, fecharia a porta e mandaria ao psicólogo da rede ou à ouvidoria ou a qualquer lugar que não fosse a minha sala pra não "me atrapalhar". Gosto mais de mim hoje. Meu dia é dedicado a aliviar o sofrimento, não por ser bonzinho, legal ou "humano", mas porque é meu trabalho, fui formado pra isso, fui contratado pra isso, e recebo pra isso. Nenhum governo que proponha medidas populistas e demagogas vai apagar isso. Nenhum movimento corporativista que se aproveita da minha área para defender interesses excusos vai apagar isso. Cada vez mais me orgulho de me pautar pelas pessoas, não pelos gestores, não pela corporação. E quando esse idiota não for mais ministro, e mesmo enquanto os "colegas" parasitas continuarem chupando o sangue do SUS, eu vou continuar sendo médico de pessoas.

Foi bom conversar comigo mesmo na versão anterior. Exercita a tolerância com o outro, renova a crença nas boas intenções, traz a esperança de que tudo passa. Até, e principalmente, eu mesmo. Ainda bem.

segunda-feira, 8 de julho de 2013

Mais médicos, mais saúde. Será?

Depois de tanta polêmica, finalmente saiu o grande plano do Governo Federal para levar mais médicos (ou mais saúde, segundo eles) para o povão. E eu não ia perder a chance de comentar.

Inicialmente uma constatação: o rebuliço surgido após a divulgação do interesse por 6 mil cubanos acabou pressionando o governo a melhorar a "grande" idéia. Pro que se mostrava, a coisa apresentada hoje foi muito menos ruim.

Então bora lá, listando e comentando as propostas:

1) Aumentar vagas de graduação e residência: isso já tinha sido dito, mas hoje saiu que 2/3 das vagas em cursos de medicina serão em instituições privadas. Isso me chamou a atenção. Será que vai ter FIES que sustente tanto estudante de medicina em faculdade particular?
Vale também olhar para os critérios que serão utilizados para autorizar a abertura das novas vagas: o primeiro deles é a relação número de leitos/aluno mínima de 5. O que significa que para abrir uma faculdade com 100 vagas a instituição deve ter 500 leitos hospitalares. Aí você me pergunta: isso é muito, é pouco, é o que? Então eu fui pesquisar no DataSUS e descobri que aqui em Pernambuco isso é muito: Caruaru tem 583 leitos (já somando públicos e privados) na CIDADE INTEIRA. Vitória de Santo Antão tem 476 leitos. Escolhi estas cidades porque são marcadas no mapa exibido na apresentação feita pelo governo hoje. Então deixo a primeira pergunta: vão construir um monte de hospitais, né? Porque o que temos hoje não dá conta. E nesse caso, precisamos mesmo de mais hospitais? (em 2005 tínhamos 2 leitos por 1.000 habitantes, o que já me parece demais).
Outro critério é o máximo de 3 alunos por equipe de atenção básica. Essa é mais esquisita ainda, vamos aos números. Recife tem 243 Equipes de Saúde da Família (ESF), o que significa que sua rede municipal pode receber no máximo 729 estudantes. As 4 faculdades daqui somadas possuem 530 vagas em medicina, o que já ocuparia 176 ESF. Será que temos equipes em condições de serem cenário de aprendizado? Em Recife sabemos que não, e as faculdades hoje fazem uma briga de foice pra conseguir equipes que recebam seus alunos. Aí eu te pergunto: e em Caruaru ou Vitória de Santo Antão? Manteremos o mesmo modelo de formação atual na Atenção Primária (preceptoria por médicos sem formação e muitas vezes sem muito interesse na área)? MEDO.
Ainda tem um lance de critérios econômicos, que incluem a contrapartida do setor privado (dono da faculdade) para o SUS. Mas quando eu penso nas instituições "P"ilantrópicas espalhadas por aí eu fico com mais medo e decido ir para o próximo passo.

2) O "segundo ciclo" da formação médica: essa até parece uma boa idéia a princípio, né? Pelo menos se você defende o serviço civil obrigatório. Os caras foram ninjas, vamos reconhecer: empurraram goela abaixo o serviço civil travestido de formação médica, e com isso conseguiram inclusive abocanhar as faculdades privadas! (sim, porque o modelo do servico civil obrigatório era para profissionais oriundos de faculdades públicas). Bem, eu não defendo serviço civil obrigatório, eu defendo liberdades. Se o governo cria um bom programa de captação de profissionais ele não vai precisar obrigar ninguém a ir. Se precisa obrigar, é porque não é grande coisa.
Mas atenção para o detalhe: os dois anos deste segundo ciclo consistem em "estágios" na atenção básica e na urgência/emergência. Não por acaso, as áreas com maior demanda dentro do SUS. Ou seja, o segundo ciclo pode até soar como uma formação direcionada para as necessidades da população, mas não deixa de ser uma estratégia para arrumar mão de obra barata. Como funciona com as residências hoje: os residentes tocam os grandes hospitais públicos desse país, todo mundo sabe disso. Nas UBS e UPA, isso vai ser feito por criaturas no limbo: nem médicos formados, nem residentes. Mas espere! Estes dois anos poderão ser usados para descontar tempo numa futura residência médica! Como assim, Bial? Esse negócio ainda vai repercutir muito, tá muito incerto, mas como só vai acontecer em 2021...=(
De toda forma, uma excelente notícia: é o fim do Medcurso! \o/\o/\o/\o/
O problema é que parece um golpe fortíssimo nas Residências em Medicina de Família e Comunidade...

3) Editais de "chamada nacional de médicos": aqui foi a maior recuada. Inicialmente eram 6000 cubanos, depois disseram que não, que seriam portugueses e espanhóis...agora será uma chamada inicialmente para brasileiros, seguida de uma segunda chamada para brasileiros formados fora do país que não revalidaram o diploma (olha o trem da alegria dos brasileiros formados em Cuba e Argentina...o da Bolívia se ferraram porque lá tem menos médicos por habitante que no Brasil), e uma terceira chamada para estrangeiros. A desculpa de não revalidar permanece: é a maneira de segurar os gringos nos locais estratégicos, o que é conversa mole pois outras coisas poderiam ser usadas: custeio da burocracia para revalidar o diploma em troca destes contratos no interior, por exemplo. Mas mesmo que aceitemos a desculpa, vale perguntar se os benefícios compensam os potenciais prejuízos. Bem, quem for vai receber 10 mil na conta pagos pelo MS (o que evita os calotes das prefeituras, boa!), além de moradia e alimentação (detalha isso aí, Padilha, senão vai ter nego em acampamento do exército) e uma ajuda de custo para se estabelecer no local que tem valor variável de acordo com a proximidade do fim do mundo que o local escolhido tiver. Parece até um princípio de Carreira de Estado para Médicos, a diferença é que não tem carreira: as vagas são de no máximo 3 anos, após este tempo o camarada precisa revalidar e seguir a vida se quiser ficar aqui. Não vou repetir o que já falei em outras postagens sobre o que realmente atrai médicos para o interior, mas não dá pra dizer que não é uma proposta mais atrativa do que o que temos hoje. Tipo, eu, uns 6 ou 7 anos atrás iria facinho facinho. Mas a questão é: é de médicos como o que eu era 7 anos atrás que o interior desse país precisa?
Pra fechar esse assunto, um outro ponto: se a seleção das cidades for feita nos moldes do Provab (o que está parecendo), não corrigiremos a distorção da distribuição (como o Provab falhou em fazer). Só vai dar certo se priorizarem de fato o interior, as cidades menores em relação às capitais. Porque no Provab acabamos com médicos direcionados para Recife, enquanto municípios do interior não tiveram ninguém. Será que uma base estadual resolveria? Pra pensar...

Ao debate.

terça-feira, 25 de junho de 2013

Dilma e a Saúde

A presidente anunciou na última sexta que iria "trazer de imediato milhares de médicos do exterior para ampliar o atendimento do SUS". Ontem, em reunião com os prefeitos e governadores, ela voltou ao tema, mas falou de forma mais amena, e inserido em outras propostas. Vou listá-las abaixo, e comentar uma por uma.

1) Ampliar a adesão dos hospitais filantrópicos ao programa que troca dívidas por mais atendimento
2) Incentivar a ida de médicos aos locais que mais precisam
3) Medidas para melhorar as condições físicas da rede de atendimento
4) Ampliação das vagas em cursos de medicina (11.447 novas vagas) (*até 2017)
5) Ampliação da formação de especialistas (12.376 novas vagas de residência) (*até 2017)

Então vamos lá, não necessariamente na ordem de apresentação:

- Hospitais filantrópicos: o programa é bom, mas muitas vezes os serviços oferecidos não se encaixam nas prioridades do sistema. Por exemplo, vamos supor que um hospital filantrópico tenha dívidas, e uma forte tradição em serviços de cardiologia. Por incrível que pareça, não temos necessidades grandes em todas as especialidades. Vamos supor que neste determinado local a necessidade de cardiologistas na rede do SUS esteja atendida com o que já existe na rede. Se o hospital só pode oferecer isso, será aceito, privilegiando o pagamento da dívida em relação às reais necessidades do sistema? Não estou acusando a proposta de fazer isso, só estou fazendo um alerta sobre problemas na execução. Se hospitais tem dívidas, elas devem ser pagas. Ponto. Se a oferta de serviços for compatível com as necessidades, ótimo, se não, que as dívidas sejam pagas de outra maneira. Até porque tem uns "filantrópicos" (com aspas mesmo) por aí que não costumam ter muito problema com dinheiro...

- Ampliação da formação de especialistas: a ampliação das vagas de residência com o objetivo de zerar o déficit para os recém-formados é muito boa, até porque vai permitir que em médio prazo a gente possa exigir residência médica para qualquer médico no SUS, o que só vai trazer benefícios à população. Mas fica uma grande pergunta: quantas vagas para cada especialidade? De novo, as necessidades da população devem ser consideradas. Países que buscam ter sistemas universais centrados na Atenção Primária (como é o caso do Brasil, pelo menos no papel e na cabeça de muita gente) necessariamente precisam direcionar a formação de especialistas para os que preencham estes serviços. Deveríamos ter 30, 40% das vagas de residência médica para formar Médicos de Família e Comunidade, hoje não chegamos nem a 5%. Outras especialidades sofrem com falta de médicos, como a psiquiatria, a neurologia, a ortopedia. Se a ampliação de vagas for pra atender a estas necessidades, ótimo. Se não for orientada por isso, é um tiro na água.
E outra coisa, a residência médica é reconhecidamente um dos grandes fatores relacionados à fixação de médicos. Então essas vagas terão que ser criadas no interior do país. O que exige preceptores de residência, estratégias de educação à distância, integração com universidades, fortalecimento de unidades de saúde+ensino...

- Ampliação das vagas em cursos de graduação em medicina: é óbvio que precisamos de mais médicos, mas formá-los sem uma política de interiorização é igual a acentuar os problemas de concentração que já temos hoje. Estas vagas devem ser criadas preferencialmente fora dos grandes centros urbanos. Isso significa uma necessidade enorme de investimento em universidades que atuem em cidades menores. E como isso vai ser feito? Queria muito saber, pois a carreira universitária ainda é pouco atrativa para médicos por causa principalmente da remuneração/dedicação exclusiva. Algumas universidades federais inclusive já superam este modelo, mas ainda falta muito para pensarmos em uma política real de interiorização da graduação em medicina.

- Melhoria da estrutura física: o governo já tem um programa bem interessante de reforma e construção de unidades de saúde da família, que precisa apenas ser ampliado ($$$$) e ter sua execução fiscalizada mais de perto. Uma alternativa seria deixar isso com os estados, pois atualmente o MS libera o dinheiro direto para os municípios e depois não tem perna pra acompanhar a execução, enquanto os estados ficam meio sem o que fazer no processo. Se a liberação de recursos fosse vinculada à adesão estadual (com aporte de recursos por parte do estado também) poderíamos ter mais agilidade na execução, mais recursos disponíveis e projetos mais próximos de um padrão regional. Essa medida depende muito da vontade política e capacidade de articulação com os municípios e estados.

- E por último (numa tentativa de segurar os leitores até o final...) vamos falar do incentivo à ida dos médicos para os locais que mais precisam. O governo já recuou várias vezes: antes eram 6 mil médicos cubanos, depois a prioridade virou Portugal e Espanha e o número sumiu, até que agora dizem que as vagas serão oferecidas primeiramente aos brasileiros, e quando vierem estrangeiros passarão por uma espécie de avaliação. O governo acerta quando aponta que precisamos de médicos (ao contrário das entidades médicas, que se baseiam no argumento de que "temos o dobro de médicos preconizado pela OMS", o que é mentira porque a OMS jamais se pronunciou em relação a um número mágico, recomendando análises de necessidades e estruturas locais para se chegar ao número para cada país). Mas ao apresentar mais números, o governo se perde, porque tenta justificar a vinda de estrangeiros pelo argumento de que o percentual de médicos estrangeiros no Brasil em relação ao total de médicos é pequeno em relação a outros países como Inglaterra, Austrália, Canadá e etc (mas não menciona que nesses lugares a revalidação do diploma é exigida, ao contrário do que querem fazer aqui com as chamadas autorizações especiais).
Mas pra mim o pior foi ler o seguinte: "O médico estrangeiro terá uma autorização especial para atuar somente em áreas prioritárias e só poderá exercer a atenção básica (ou seja, ele não vai poder realizar procedimentos mais complexos como cirurgias, por exemplo)". Essa é de matar. Primeiro porque médico com atuação limitada é "meio-médico", e não é disso que o Brasil precisa. Segundo porque não reconhece a extrema complexidade que envolve o trabalho de um médico de família, e o coloca como um profissional limitado, simples. A Atenção Primária, exatamente por se propor a cuidar das pessoas e resolver pelo menos 80% dos problemas apresentados pelas pessoas é um cenário bastante difícil, e é onde deveriam estar os melhores médicos, não os "limitados", com "autorização especial". Esse ponto da proposta pra mim equivale a uma cuspida na cara, me desculpem o extremo.

Enfim, entre as propostas da presidente as que menos me agradam são as da Saúde. A pergunta que me faço é se isso é porque são as piores mesmo ou se é por eu entender um pouquinho do assunto é que consigo enxergar os defeitos. E nesse caso, o que dizer das demais?

segunda-feira, 24 de junho de 2013

Melhorou, Dilma. Mas ainda falta muito.

Como dediquei um post ao pronunciamento da presidente Dilma (sim, eu vou continuar chamando-a de presidente), acho que fico com a obrigação de comentar os desdobramentos. Pois bem, hoje ela fez um discurso de abertura na reunião com os governadores e prefeitos das capitais onde lançou mais propostas. Então vamos lá.

Primeiro, dizer que é bom ouvir a presidente se manifestar publicamente com frequência. Acho que Dilma fala muito pouco, entendo que o tipo dela é o de gestora que não perde tempo com marketing (aham), mas ela é a comandante da barca, eleita por um caminhão de votos, e a população PRECISA ouvir mais o que ela acha sobre as coisas mais importantes relacionadas ao país.

Segundo, dizer que acho que ela se tocou que a manifestação nas ruas dá a ela um belo suporte político pra lançar propostas mais arrojadas. Isso é bom. E me parece (espero que mantenha a opinião) que ela tem mais coragem do que Lula (que tinha mais prestígio e mesmo assim não fez esse tipo de enfrentamento).

Voltando ao pronunciamento, ela fez um blábláblá inicial e depois lançou cinco propostas. A primeira: um pacto pela responsabilidade fiscal, estabilidade econômica e controle da inflação. Nem ela falou muito sobre isso, e nem tem muito o que falar. Ou tem? O que significa este pacto? Significa que todos se comprometem a não estourar os orçamentos, mas é só isso? Deviam ter proposto este pacto aos que planejaram e executar as obras da Copa (que só pra lembrar, tá custando o mesmo que as três últimas somadas).

A segunda proposta se divide em três: um plebiscito para autorizar uma constituinte exclusiva para a reforma política, a classificação da corrupção como crime hediondo e o cumprimento da Lei de Acesso à Informação. A idéia do plebiscito é sensacional, pois dá legitimidade à briga, enquadra e joga a batata quente na mão do Congresso (que não vai ter peito pra recusar) e pode gerar a Reforma Política, que deve ser menor do que precisamos, mas mesmo assim melhorar muito as coisas. A história da corrupção como crime hediondo nem é nova mas estava meio "esquecida" no Congresso e o momento político é perfeito para relembrá-la. Sobre a Lei de Acesso à Informação, vamos ver o que acontece. O próprio Palácio do Planalto já tinha anunciado que não iria mais divulgar as despesas com viagens da presidente, mas acabou mudando de idéia. Ainda bem.

A terceira proposta é a da saúde, e eu vou falar especificamente sobre ela amanhã, porque parece que o ministro Padilha vai divulgar algumas novidades amanhã então eu aproveito pra analisar o pacote todo e comentar aqui.

A quarta proposta é sobre transporte público, e envolve mais investimentos (50 bilhões! De onde saiu isso?), desoneração para baratear passagens e a criação de um Conselho Nacional de Transporte Público. Essa proposta foi excelente, sintonizada com o que desencadeou o movimento das ruas e sensível às necessidades da população. Só podia rebatizar este conselho, em vez de "Transporte Público" chamar de "Mobilidade Urbana", pois assim inclui ciclovias/ciclofaixas, ruas exclusivas para pedestres e outras coisas. Mas beleza, a essência da discussão deve estar lá então não tem problema.

E a quinta proposta é a da educação, onde ela repetiu o que tinha dito no pronunciamento do dia 21/junho.

O que eu achei no geral? Melhorou bastante. Mostrou coragem. Quando alguma coisa contradiz o vice fisiologista e coloca gente como o Serra pra fazer crítica vazia a tendência é que o negócio seja bom. Ainda mais quando lideranças da oposição passam recibo do enquadramento. Só falta alguém convencer ela de que o Padilha tá viajando na maionese e não tá passando os dados completos pra ela (ou alguém diferente do ministro, porque sei lá, né?) e assim induzindo decisões erradas. Se ela continuar evoluindo assim é capaz até de me convencer a votar nela ano que vem (dependendo das opções, óbvio).

sábado, 22 de junho de 2013

Era isso, Dilma?


Antes de mais nada, uma coisa: a única coisa aceitável que deve ser feita para tirar a presidente do cargo se chama eleição. Tem uma daqui a pouco mais de um ano. QUALQUER coisa que não seja isso é golpe de estado.


Dito isso, que pronunciamento fraco. Claro, não dava pra ser muito objetiva ao responder a manifestações pouco objetivas. Primeira lição: se pressionar o governo responde. Agora é preciso focar em pontos específicos para poder exigir respostas específicas.

Primeiro ela anunciou apoio às manifestações, junto com a promessa de manter a ordem. Defender "Ordem" pra mim é coisa de integralista, isso acaba despertando figurinhas sinistras. O Beltrame (secretário de segurança do RJ) já tava falando em exército na rua. Eu acho que ela anunciou isso pra mostrar que tem o controle, que não quer bagunça, e que vai agir. Mas eu fico com medo dos monstrinhos que ela vai precisar acionar pra conter a revolta. Boa sorte pra ela, de coração.

"Reforma política". Que bonito. Como assim? O governo há pouco fez uma tentativa (até então bem sucedida) de sufocar o surgimento de novos partidos, com medo do crescimento de Marina Silva (figura que nem me agrada tanto, mas que tem representatividade e precisa ter espaço para ser ouvida). Dilma não falou nada sobre qual a reforma política que ela defende. É o voto distrital? É o financiamento público de campanhas? Ou detalha a proposta ou não responde nada.

"Plano nacional de mobilidade urbana, focado no transporte público". Ótimo. Mas não já tinha rolado uma conversa dessas quando anunciaram a Copa? Lembro até se dizia que a mobilidade urbana seria um dos "grandes legados" da Copa. Acabou que muitas cidades não avançaram, as obras não aconteceram. Recife tem um estádio no fiofó do mundo (e tá certo, porque estádio em região central atrapalha a vida de todo mundo, envolvido no evento ou não) e pra chegar e sair de lá o cara tem que planejar direitinho senão passa mais tempo no transporte do que no evento. Ou seja, nem para a Copa em si a mobilidade urbana aconteceu, imagina para o resto?

"100% dos royalties do petróleo para a educação". Massa. Mas é o tipo da promessa que não sai do canto, ainda mais se for discutido com os governadores e prefeitos. Há pouquinho tempo a pauta do Congresso estava trancada porque não se chegava a um acordo na questão dos royalties. Então a promessa dela não é fácil de ser cumprida, porque depende da articulação com o Legislativo. O problema é que estas articulações normalmente geram acordos que envolvem coisas como entregar Ministérios ou Comissões Parlamentares a partidos "aliados". Tipo o Marco Feliciano na Comissão de Direitos Humanos. Então eu fico imaginando quantas mães ela vai ter que vender pra conseguir aprovar uma coisa dessas. A única chance seria pressionar o Congresso, mas como a massa alienada acha que tudo é culpa do Executivo, fica difícil.

"O dinheiro público entrou nas arenas por empréstimo e será devolvido". Quando? Qual o prazo de pagamento? E os juros? Será que os juros do empréstimo compensam, especialmente num cenário provável de piora da economia para os próximos anos? E o mais importante: se esse dinheiro tivesse sido investido em outras coisas como educação e saúde, será que não compensaria mais? Lanço aqui uma proposta: que o dinheiro desses empréstimos, quando pago, seja obrigatoriamente investido na saúde, mais especificamente no Programa de Requalificação de Unidades Básicas de Saúde (que já existe). Isso ajudaria na estrutura dos serviços de saúde, especialmente nos lugares onde ninguém quer ir. E falando nisso...

"Importação imediata de milhares de médicos para atender às necessidades da população". Eu já falei sobre isso AQUI e AQUI. Mas independente do mérito da questão, colocar isso nesse momento foi estúpido. Primeiro porque pouca gente pediu isso nas ruas (e a idéia não era ouvir "a voz das ruas"?). Segundo porque é uma medida que tem oposição na sociedade, independente das anteriores, e esse pronunciamento deveria muito mais focar em unir as pessoas em torno de causas do que em gerar confronto. A resposta rápida da corporação médica foi anunciar paralisação na semana que vem. Bola fora, agudizou um problema que estava em discussão. Só consigo ver uma razão: aproveitar o momento de mobilização para tentar empurrar o tema como agenda estratégica, para que passe mais rápido e aconteça a tempo de dar dividendos eleitorais (pra ela e pro ministro Padilha, que deve concorrer ao governo paulista).

Enfim, o meu medo era que ela acentuasse as tensões com o discurso, e isso não foi feito (só com os médicos, mas não vai chegar nas ruas na imensa maioria dos estados). Acho até que acalmou a ala mais moderada dos manifestantes (a maioria). Mas os mais radicais não se sentiram ouvidos, e vão continuar na rua.

As minhas conclusões são:
1) #ficadilma, mas só até o final do ano que vem.
2) #todosnarua, mas definam as pautas, ok?
3) O pau vai comer na rua, pois vão soltar os cachorros em cima dos que estão no quebra-quebra.

Como eu disse a alguns amigos ontem, mais importante do que o discurso dela serão as reações ao discurso. Vamos ver o que acontece.

sábado, 11 de maio de 2013

Ainda sobre a falta de médicos e as soluções para o problema

Depois de alguns dias discutindo em vários espaços a questão de ser bom ou não trazer uma penca de médicos de Cuba pra cá, entendi que o grande problema deste governo (e dos anteriores também) é a falta de clareza no que propõe. Não existem estudos bem feitos sobre os problemas, não existem propostas bem embasadas, não existem metas. E por falta disso tudo, surgem soluções mirabolantes querendo resolver o problema em 6 meses, usando como justificativa a urgência da população. Se a gente pensa muito no hoje não resolve o amanhã. Se minha política pra falta de água é comprar caminhão-pipa eu nunca vou ter barragens, aquedutos, etc.

Imaginem se o governo publica o seguinte documento:

----------------

"O governo federal estudou ao longo de (insira um período) a questão da insuficiência de assistência médica no interior do país. Diversos estudos foram realizados por instituições de pesquisa nacionais, e os resultados obtidos foram analisados por uma comissão que incluía técnicos do governo, entidades profissionais e o controle social (indicados pelo Conselho Nacional de Saúde). As conclusões desta comissão são aqui apresentadas, assim como as propostas e metas para cada um dos problemas.

Problema 1: Número insuficiente de médicos no país:

O Brasil tem (coloque um número aqui) médicos, com uma taxa de (coloque um número aqui) médicos/100 mil habitantes. Entendemos que para atender às necessidades de um sistema de saúde que se pretende universal, em um país com a extensão territorial que temos e considerando o fenômeno da concentração de médicos nos grandes centros (que será discutido especificamente mais adiante), o país precisaria ter (coloque um número aqui) médicos/100 mil habitantes. Para atingir esta meta precisamos ampliar o número de médicos formados por ano: atualmente o Brasil forma (coloque um número aqui) médicos/ano, e precisaria formar (coloque um número aqui). Assim, serão tomadas as seguintes medidas:
a) Ampliação das vagas em Universidades Federais: as Universidades Federais serão estruturadas e financiadas para atender às necessidades de ampliar as vagas para os cursos de medicina, e considerando que o local onde o curso é realizado influencia na fixação do profissional, serão criadas (coloque um número aqui) vagas para cursos de medicina em cidades-pólo localizadas no interior do país.
b) Estímulo à criação de vagas em Faculdades de Medicina privadas localizadas em regiões estratégicas: o governo regulamentará a utilização de unidades do SUS pelo setor privado na formação de médicos, e estimulará as instituições interessadas em abrir cursos médicos no interior do país. Algumas normas são necessárias para garantir acesso amplo dos brasileiros a estas vagas, o que pode ser feito com a revisão de políticas como o Prouni.
c) Atração de médicos estrangeiros para o país: considerando que outros países acumulam experiências importantes e bem-sucedidas de construção de sistemas de saúde com uma Atenção Primária (APS) forte e universal, atrair profissionais formados nestes países pode contribuir quantitativa e qualitativamente com o provimento de médicos no Brasil. O governo identificará, em parceria com o Controle Social e as entidades profissionais, quais os países que serão considerados prioritários, e desenvolverá mecanismos de facilitação da revalidação do diploma de médico obtido nestes países. Serão financiados cursos de português e as provas de proficiência na língua, assim como a tradução dos documentos necessários para a revalidação (a legislação brasileira exige tradução juramentada dos diplomas, o que encarece bastante e dificulta a atração de profissionais em início de carreira, que normalmente são os maiores interessados em processos de imigração). As provas de revalidação serão realizadas sob a supervisão das entidades médicas e do Controle Social, para que mantenham a qualidade necessária e ao mesmo tempo garantam o atendimento às necessidades de saúde do país. Serão convidados observadores internacionais para contribuir com a manutenção de um grau de dificuldade compatível com as necessidades da população. Com estas medidas, pretendemos passar de (coloque um número aqui) para (coloque um número aqui) médicos estrangeiros com diplomas médicos revalidados anualmente no Brasil.

Problema 2: Pouca atratividade dos municípios do interior para os médicos

O provimento de médicos no país não resolve sozinho as necessidades da população, pois é necessário atrair estes médicos para os locais que mais precisam. Os estudos realizados mostram que as maiores dificuldades na atração dos profissionais incluem a não-garantia de pagamento dos salários pelos municípios, as condições precárias de trabalho, a pouca profissionalização da gestão da saúde (com frequentes ingerências políticas no trabalho dos médicos) e a resistência em mudar com a família para regiões remotas (com problemas como a oferta de escolas para os filhos, de emprego para os(as) cônjuges, etc.). Por isso, municípios com maior dificuldade de provimento e fixação serão incluídos em um programa federal de atração de médicos a estes lugares, que incluirá as seguintes ações:

a) Plano de carreira federal: considerando ser o médico um profissional estratégico, será elaborado um plano de carreira federal, onde os médicos serão contratados como servidores públicos federais com salário compatível com o mercado e plano de mobilidade que inclua o início da carreira em municípios menores e permita a migração, se desejada, para municípios maiores a partir de critérios de tempo transcorrido e de desempenho na função, ou a valorização salarial progressiva para os que desejarem permanecer nos municípios menores.
b) Estruturação da rede de saúde no interior: as linhas de financiamento do Governo Federal priorizarão os municípios menores na liberação de recursos para construção, reforma, ampliação de unidades de saúde. Serão garantidos pelo Governo Federal recursos suficientes para a existência de uma Equipe de Saúde da Família para cada 3500 habitantes, que trabalharão em Unidades Básicas de Saúde com estrutura padronizada em todo o país. Só serão construídas outras formas de unidades de saúde (como hospitais, unidades de pronto-atendimento, entre outros) após a garantia de uma rede mínima de serviços de Atenção Primaria à Saúde.
c) Priorização da residência médica em Medicina de Família e Comunidade: considerando que o médico de família e comunidade (MFC) é o profissional mais adequado para atuação na APS, o Governo Federal adotará medidas como a criação de Programas de Residência Médica nesta especialidade no interior do país, apoiados pelas IES federais e por mecanismos de Educação à Distância. Além disso, esta especialidade será considerada pré-requisito para a entrada em vagas de especialidades focais (cardiologia, endocrinologia, neurologia, etc.), o que direcionará os médicos recém-formados para uma complementação de sua formação mais orientada para as necessidades do país, como acontece em outros países com sistemas de saúde mais bem desenvolvidos. Para isso serão criadas, em um prazo de 5 anos, (coloque um número aqui) vagas para a Residência em MFC no país.
d) Profissionalização das gestões municipais: será criada Lei Federal que exija formação mínima para cargos de gestão no SUS, e os estados e municípios serão estimulados a adotar leis semelhantes. Considerando a dificuldade no provimento destes profissionais, o Governo Federal financiará cursos de formação de gestores de saúde em larga escala nos próximos cinco anos, formando ao menos (coloque um número aqui) de gestores. Este período de formação será considerado como período de adaptação à nova legislação por parte dos municípios.
e) Outros benefícios: serão discutidas nos próximos anos medidas que estimulem a migração de famílias de médicos para o interior do país. Entre elas poderão estar a priorização de vagas para os filhos em instituições de ensino, o fornecimento de linhas de crédito para construção/aquisição de casa própria, o subsídio temporário do transporte entre o município de origem e o de fixação, entre outras."

-------------------

E assim vai. Tem muito pra fazer ainda, isso é só o produto de meia hora de dedicação à escrita na frente de um computador. Tem gente muito mais sabida do que eu no governo, que pode fazer ciosa muitíssimo mais bem elaborada e embasada. Mas o caminho é esse. Não dá pra fazer de outro jeito. Ou responde às perguntas básicas (de quantos médicos precisamos? quem são os médicos que precisamos? como poderemos formá-los? como atraí-los para o interior do país? etc...) ou vai ficar enxugando gelo.

segunda-feira, 6 de maio de 2013

A vinda de médicos cubanos

Acabo de ler que o governo Dilma decidiu por trazer médicos cubanos para atender as áreas mais carentes do país. Segundo a matéria, deverão vir cerca de 6.000 médicos daquele país para suprir as necessidades brasileiras.

Sobre este assunto, alguns comentários, dúvidas, perguntas:

1) Os indicadores sociais de Cuba com frequência são usados para julgar a qualidade dos médicos do país. Mas será que uma coisa tem a ver com a outra? Entendo que os indicadores sociais de Cuba (especialmente a mortalidade infantil, o mais celebrado dos relacionados à saúde) dependem muito pouco do atendimento médico, mas dependem muito de políticas públicas. Vários indicadores não diretamente relacionados à saúde estão ligados à mortalidade infantil: alfabetização da mãe, saneamento, entre outros. Por outro lado, acesso a vacinas, acompanhamento de crianças de risco, assistência ao parto, assistência farmacêutica são coisa diretamente ligadas à mortalidade infantil, e não entram na discussão. Médicos não são deuses. Médicos resolvem problemas quando estão preparados E têm estrutura para isso. A imensa maioria dos municípios do Brasil não oferece as condições necessárias para fazer o mínimo na saúde. Até poucos dias estávamos sem vários exames usados no pré-natal de baixo risco aqui na rede municipal de Recife. Vamos discutir a minha capacidade como médico a partir das minhas condições de trabalho?

2) Segundo este site aqui (http://www.escolasmedicas.com.br/intern3.php) - aceito informações mais precisas se alguém tiver - Cuba tinha 66 mil médicos em 2006. De acordo com este outro site (http://www.infoescola.com/medicina/medicina-em-cuba/) eles formam pouco menos de 6 mil novos médicos cubanos (ou seja, descontando os de outras nacionalidades que se formam por lá) por ano. Ou seja, vou supor que eles tenham cerca de 100 mil médicos no país (o que me parece absurdo pra um país com 11 milhões de habitantes - imagina 100 mil médicos só em Pernambuco, que tem 9 milhões -  mas vá lá). Quer dizer que 6% da força de trabalho médica de Cuba será deslocada para o Brasil? Acho que meus números não fazem muito sentido...

3) Qual será o dispositivo legal que o governo irá criar para manter estes profissionais nas áreas carentes? Será que os cubanos, assim como os brasileiros, não cairão nas "tentações"que temos por aqui?

4) Que tal colocar médicos cubanos no Albert Einstein ou no Sírio-Libanês, onde os governantes desse país procuram atendimento quando precisam? Por que médicos cubanos só para as áreas carentes? Por que o governo insiste em uma política de medicina pobre (com idéias brilhantes como o Provab ou essa dos cubanos) para os rincões do país?

5) Já existe um programa de revalidação de diplomas obtidos em universidades estrangeiras, e tá cheio de estrangeiro (e brasileiros formados fora do país) querendo vir pra cá, ainda mais em tempos de crise econômica na Europa. O problema é que revalidar o diploma é MUITO caro e o processo é burocrático ao extremo. Que tal subsidiar os custos com tradução e outros, facilitar a burocracia (entendam, facilitar a burocracia, não a prova em si) e exigir em troca o trabalho nestes locais por um período? Por que só os cubanos servem às necessidades brasileiras? Tem algo estranho aí.

Enfim, eu topo fazer essa discussão. Pra mim é bola fora do governo. Aliás, de bola fora na área da saúde esse governo já superou os limites.

(fonte da notícia: http://noticias.uol.com.br/saude/ultimas-noticias/redacao/2013/05/06/brasil-trara-6-mil-medicos-cubanos-para-atender-moradores-de-areas-carentes.htm)

quarta-feira, 17 de abril de 2013

Vacina contra a gripe

Estamos em campanha nacional de vacinação, e muita gente me pergunta sobre a vacina no momento (fico feliz)...então achei que valia uma postagem no blog com algumas informações:



1) NÃO TEMOS EVIDÊNCIAS DE QUE A VACINA FUNCIONE EM MENORES DE 2 ANOS:

http://onlinelibrary.wiley.com/doi/10.1002/14651858.CD004879.pub4/abstract



2) NÃO TEMOS EVIDÊNCIAS DE QUE A VACINA REDUZA COMPLICAÇÕES, INTERNAÇÕES OU MESMO A TRANSMISSÃO DA GRIPE EM ADULTOS SAUDÁVEIS:

http://onlinelibrary.wiley.com/doi/10.1002/14651858.CD001269.pub4/abstract



3) NÃO TEMOS EVIDÊNCIAS DE QUALIDADE SOBRE A SEGURANÇA, EFICÁCIA E EFETIVIDADE DA VACINA EM PESSOAS COM 65 ANOS OU MAIS:

http://onlinelibrary.wiley.com/doi/10.1002/14651858.CD004876.pub3/abstract



4) NÃO TEMOS EVIDÊNCIAS DE QUE VACINAR PROFISSIONAIS DE SAÚDE CONTRA A GRIPE PROTEGE OS PACIENTES DA DOENÇA:

http://onlinelibrary.wiley.com/doi/10.1002/14651858.CD005187.pub3/abstract



Um bom resumo das evidências, compilado pela Cochrane Collaboration, está aqui:

http://www.thecochranelibrary.com/details/collection/978807/Influenza-evidence-from-Cochrane-Reviews.html



Outro bom conjunto de informações está aqui, compiladas por Juan Gérvas:

http://equipocesca.org/new/wp-content/uploads/2012/09/flu-vaccine-reasons-no-Sept-2012.pdf

ou aqui:

http://www.actasanitaria.com/opinion/el-mirador/articulo-provisional.html

---------------------------------

Pronto, minha parte eu fiz. Eu não tomo a vacina e sou profissional de saúde, minha mulher está grávida e não vai tomar, e minhas filhas estão fora da faixa etária então estão "livres". E não recomendo aos meus pacientes.

Tu aí, tu toma se quiser. Se eu puder ajudar em mais alguma coisa...=)

quarta-feira, 20 de março de 2013

Varizes

Reprodução resumida de diálogo durante consulta, num desses dias:

-------------------------

- Bom dia, tudo bem?
- Tudo mais ou menos, doutor...
- O que houve?
- Tô com varizes na perna, está muito grande, tá horrível...queria que o senhor me encaminhasse a um médico de varizes.
- Ok, vamos dar uma olhada...
(...)
- E aí? Tá muito feio?
- Olha só, de fato tem algumas varizes...
- (interrompendo) Algumas? Tem um monte! E essa da panturrilha, tá horrível!
- Vê só, vamos conversar. A gente pode fazer algumas coisas: elevar a perna de vez em quando, usar umas meias compressivas se for ficar trabalhando muito tempo em pé, tomar um analgésico quando doer...mas você me pediu pra te encaminhar a um médico que possa cuidar disso. Então deixa eu te dizer uma coisa: essas varizes pequenininhas, por mais que tenha muitas delas, costumam responder muito pouco ao tratamento. Nesse caso não é cirurgia, é um tratamento que envolve algumas injeções nas pernas pra tentar eliminar as varizes. O problema é que elas costumam voltar e o tratamento não é fácil conseguir no SUS, então tu tem que pensar se quer isso mesmo. Diante disso, posso perguntar uma coisa?
- Pode sim.
- Tu tem 31 anos, certo?
- Certo.
- E imagino que as mulheres da tua família tenham varizes iguais às suas, certo?
- É...certo.
- Então deixa eu te dizer uma coisa. Estas varizes não são nada que você precise se incomodar tanto. Eu sei que esteticamente a gente se preocupa, mas pelo que você está me dizendo e pelo que eu vejo aqui este é o seu corpo, é a tua história, e é difícil lutar contra isso. Mas aí cabe uma outra questão.
- (silêncio)
- Você não devia se deixar influenciar por um padrão de beleza que está na televisão, nas revistas. Primeiro porque ele não é real: tu acha mesmo que a maioria das pessoas se parece com aquelas panicats? E segundo porque ele é mentiroso: pode aproximar a câmera ou tirar o photoshop que aquele corpo perfeitinho desaparece. Pessoas normais têm pneuzinho, celulite, estrias, varizes, sardas, culote, orelha de abano, pé torto.
- (Começa a chorar) É que me incomoda tanto! Eu fico com vergonha do meu marido! Ele é lindo, sabe? E tá na faculdade...aí eu fui lá um dia e vi um monte de menininhas, e só fico pensando que ele vai acabar me trocando por uma menininha daquelas. Eu nem saio mais com ele, não coloco mais um short em casa, ele vive me chamando pra ir pra praia que ele adora mas eu não quero ir.
- E como tá a relação de vocês? Ele te cobra em relação a isso?
- Não, de jeito nenhum! Olha...ele gosta muito de mim, eu tenho certeza! Ele faz tudo por mim, aquele homem! Ele vive dizendo pra eu não me preocupar, que isso é besteira!
- Então! Vai por mim, ouve teu marido! Ele sabe muito bem a diferença entre você e as menininhas da faculdade. Ele sabe muito bem porque está com você e não com elas.
- É...eu sei. Eu confio nele. A gente é muito feliz.
- Vocês têm filhos?
- Temos! Eu tenho dois do meu primeiro casamento e ele tem um do primeiro casamento dele.
- E como é a relação entre todos vocês?
- É ótima! A gente é feliz, de verdade.
- Pois é! Vai por mim, conversa com teu marido. Eu tenho certeza que ele prefere você com suas varizes tomando uma cervejinha com ele na praia do que em enfiada em casa! E sinceramente, olha ao teu redor. A maioria das mulheres tem varizes! Tu tá com vergonha de que? Aproveita a vida!
- (Sorri) Verdade. Acho que o senhor tá certo.
- Mas enfim, é só uma opinião. A gente vai fazer o que você achar melhor. Quer que eu tente fazer o encaminhamento? Fique à vontade!
- (Pausa. Sorri de novo) Não, não. Olhe, acho que hoje eu vou dormir como não durmo faz tempo. Eu tava muito preocupada, triste, mas gostei do que o senhor falou. Acho que é por aí. Vou pensar mais sobre isso.
- Então, faz aquelas coisinhas que eu falei e vamos vendo. Qualquer coisa tu volta aqui e me procura, ok?
- Ok. Muito obrigado, de verdade. Foi muito bom conversar. Sabe que eu tenho uns parentes, uns amigos médicos e não tinha coragem de conversar sobre isso? Morria de vergonha.
- Pois eu que agradeço pela confiança...você não teve coragem de conversar com os parentes mas se abriu comigo. Obrigado, viu? Espero ter retribuído.
- Ô! Vou chegar em casa e contar pro meu marido tudo o que o senhor falou! Ele vai ficar é feliz, porque ele ficava me dizendo mais ou menos a mesma coisa...

-----

E assim se ganha mais um dia de sorrisos no rosto que quem tá do lado não entende o porquê...eita profissãozinha apaixonante!