terça-feira, 29 de abril de 2014

Pode chamar de fofoca, eu chamo de consulta.

- Boa tarde, dona Clara. Tudo bem com a senhora?
- Tudo bem, doutor.
- E aí, o que houve?
- Eu marquei pro senhor porque minha pressão tá alta, e eu continuo com aquelas dores que eu falei da outra vez.
- Certo. Deixa eu dar uma olhada no seu prontuário...certo, as dores nos braços?
- Isso, doutor. Na verdade tem doído o corpo todo.
- É mesmo? Eu passei antiinflamatórios pra senhora da outra vez porque pelo que eu examinei parecia ser uma dor muscular por excesso de esforço, lembra? A senhora falou que trabalha como doméstica...os remédios aliviaram alguma coisa?
- Na verdade não, doutor.
- Ok. Vamos conversar mais sobre isso. Mas a senhora falou que a pressão anda alta, não foi? A senhora já tinha tido pressão alta?
- Sim doutor, eu sou hipertensa. Nem falei pro senhor naquele dia. Mas eu usava até um remédio, não lembro o nome, que eu não tomo desde fevereiro, porque acabou e eu não tava mesmo vendo muita melhora com ele, aí nem fui atrás de pegar mais.
- Tudo bem. Deixa eu ver essa pressão como está...16 por 11. Tá alta mesmo, dona Clara.
- Não disse? Eu não ando muito bem...
- E como estão as coisas? Assim, no geral? Em casa, no trabalho...tem tido muito trabalho?
- Ah, doutor, tá tudo certo. O trabalho nem tem muito esforço, hoje em dia eu cuido mais dos meninos do que da casa, porque ela colocou uma pessoa lá pra lavar roupa e passar, pra não forçar meu braço.
- Eita. Sua patroa deve gostar muito de você então. Faz tempo que você está lá?
- Faz sim, tem uns 10 anos já. Ela gosta de mim, porque eu é quem cuido dos meninos dela. Se não fosse eu...
- Como assim?
- Tem dois meninos lá, doutor. Marcelo, que tem 14 anos, e Miguel, que tem 10. O mais novo é tranquilo, mas o mais velho...
- Dá muito aperreio?
- Dá sim. Ele é complicado. Só obedece a mim.
- Como assim? E os pais?
- Oxe doutor, os pais...o pai dele viaja muito, passa a semana inteira fora e só volta no fim de semana. O menino fica solto. A mãe é muito mole. Ela nem gosta quando o pai fala alto com os meninos. E ela...pro senhor ter uma idéia, quem bota os meninos de castigo sou eu.
- Mas o que esse menino faz tanto?
- Ele é virado, doutor. Quer tudo do jeito dele, na hora que quer. Dia desses mesmo, encheram a casa de chocolate por causa da páscoa. Aí o menino queria se entupir de chocolate o tempo todo. Só que quando eu estou lá ele respeita, sabe? Me pede. Aí eu disse que não podia. Ele disse que ia ligar pra mãe, e eu disse que ele podia ligar pro Papa que não ia comer chocolate. Ele ligou, a mãe disse que podia, mas quando ele disse que eu tinha proibido, ela disse: "então não pode".
- Ela confia muito na senhora, então...
- Tem que confiar. Porque ele só obedece a mim. Quando ela pediu pra eu cuidar dos meninos eu disse: "eu cuido, mas a minha ordem é a minha ordem". E ela topou. Tá vendo que eu ia aguentar aquele menino sem poder mandar nele?
- Pelo jeito ela não passa muito tempo com eles, né?
- Passa não, doutor. Ela trabalha muito, e sai muito também. Mas quando ela tá em casa também...os meninos ficam no computador o tempo todo.
- É mesmo?
- É. O senhor acredita que ele gastou 500 reais no cartão da avó comprando coisas no computador? Gastando dinheiro nesses negócios de jogo...e dia desses ele gastou foi no cartão da mãe, mais de mil reais.
- Oxe...e essa mãe não bota esse menino de castigo não?
- Colocar coloca...deixa ele sem computador e sem iPod. Mas quando chega na sexta ela libera. Porque ela quer sair, né? Aí tem que deixar ele ocupado.
- E ele joga muito então, né?
- Demais. Quando eu estou lá, não, porque comigo ele dorme na hora. Dia desses a mãe tinha saído e eu estava lá, aí disse: "vamos, Marcelo. Dez da noite, hora de dormir". Aí ele disse que a mãe, antes de sair, disse que ele podia ficar até as onze. E eu disse: " quando ela estiver aqui você se resolve com ela. Comigo aqui vai dormir às dez". Ele fica arretado, mas obedece. Agora sabe o que ele fez um dia desses?
- O que?
- Ele tava botando era o despertador pra acordar de madrugada e jogar. Aí ficava lá, caladinho, porque tava todo mundo dormindo e ninguém via. Até que eu desconfiei e perguntei ao mais novo.
- E a senhora desconfiou por que?
- Porque ele estava dando trabalho pra acordar de manhã, e eu via que ele estava com sono mesmo. Aí eu perguntei a Miguel e ele disse.
- A senhora tá ligada, né?
- Oxe. 10 anos lá, doutor, conheço tudo. Dia desses mesmo teve uma lá que a mãe não me contou na hora mas eu sabia que tinha algo errado, apertei, e ela acabou me contando.
- O que houve?
- Ele começou com um negócio de chamar os amigos pra dormir lá. E toda vez era na noite que eu ficava dormindo lá. Só que os amigos, o senhor imagina, tudo igual a ele, um monte de reizinho. Começaram a pular em sofá, a fazer a maior bagunça, e na confusão derrubaram o computador dele...computador feito esse aí do senhor não, um daqueles pequenos, que fecha assim.
- Notebook.
- Isso, notebook. Só que caiu no chão e tinha era quebrado, mas ele não falou nada. Eu tava achando estranho porque nos dias seguintes não via ele jogar. Até perguntei, e ele falou que não queria. Como assim não queria, o menino é viciado naquele negócio. Então eu fui atrás da mãe, e depois que os meninos dormiram ela acabou me contando que o computador tinha quebrado.
- E por que só quando os meninos dormiram?
- Pra não falar na frente dele, né. Parece que ela tem medo dele. Então, ela me contou que tinha quebrado. Só que eu não deixei barato. Na hora eu fiquei calada, mas depois...
- Como assim?
- No outro dia eu peguei ele, botei na frente da mãe e disse: "conte pra sua mãe como você quebrou o computador, antes que eu mesma conte". E ele contou que o amigo tinha derrubado o computador quando pulou no sofá. Ela ficou revoltada, e disse que não ia consertar.
- Eita, olha aí, dessa vez ela reagiu!
- Que nada. Ele acabou pegando o de Miguel, porque lá cada um tem um. E acabou quebrando o de Miguel. Aí quando o de Miguel quebrou eles colocaram os dois pra consertar, e acabaram usando as peças do de Miguel no dele, e compraram um novo pra Miguel.
- É...deve ser difícil pra senhora cuidar desses meninos.
- E agora tem uma menina também!
- Como assim?
- Seguinte: eles estavam separados. Aí voltaram há pouco, mas ele tinha tido uma menina com uma moça aí. E a cada 15 dias ele leva a menina lá pra casa.
- E qual a idade dela?
- Dois anos. Bonitinha ela.
- E a senhora cuida?
- Nada, o pai fica com ela. Ele pega ela de manhã e devolve à noite. A patroa é que não gosta. Assim, ela finge que gosta, fica tentando brincar com a menina. Mas a menina não gosta dela. Criança parece que sente as coisas, né?
- É mesmo. E a mãe dessa menina?
- Fica pra lá, na casa dela. Nunca nem vi. Morro de pena, porque a menina tem tanta roupinha linda lá em casa e não pode levar, porque o pai não deixa. Vai acabar perdendo tudo.
- Oxe...ela não pode levar as roupas?
- Pode nada. O pai não deixa. Dia desses eu fui perguntar e ele disse que a mãe da menina não queria que fosse nada de lá pra casa dela. Mas eu sei que é ele que não deixa.
- E a senhora no meio dessa confusão toda?
- Num é? Complicado, né, doutor?
- É sim. Eu tava pensando aqui...será que essa dor da senhora e essa pressão alta não tem relação com isso tudo?
- Doutor, deve ter, né? Mas eu gosto de lá. Dá muito aperreio, mas eu gosto de lá.
- Então vamos fazer o seguinte, a senhora podia vir aqui mais umas vezes, pra gente conversar mais e aproveitar pra gente ver se controla essa pressão. Vou começar o tratamento de novo com os remédios, e a gente vai se falando e resolvendo os próximos passos. Pode ser? Vou pedir uns exames também porque quem tem pressão alta de vez em quando tem que checar se os rins estão bem, se a glicose no sangue tá boa...
- Tá ótimo, doutor. Gostei do senhor. Vou voltar mesmo, viu?



(obviamente, nomes e outras informações que pudessem identificar as pessoas envolvidas nesta postagem foram trocados, porque Recife é um ovo de codorna e vai que a coisa circula muito, né?)

terça-feira, 22 de abril de 2014

Aviso aos navegantes

Só um aviso pra quem chegou por aqui (a)traído pela última postagem, que descia a lenha no Lula.

Este que aqui escreve gostaria de fazer algumas declarações pra que não pairem dúvidas sobre a orientação política-ideológica deste espaço:

- Votei no Lula sempre que ele foi candidato (embora não tenha planos a curto prazo de repetir a experiência)
- Votei na Dilma porque entre ela e o Serra eu sou mais ela sempre
- Acho que Lula foi um presidente extraordinário, e que Dilma foi muito fraca
- Acho que todo o núcleo duro do PT sabia do mensalão
- Não vejo o PT como o partido mais corrupto do país, apenas como o primeiro a ser pego de forma tão escancarada
- Defendo o Bolsa Família, o Prouni, cotas raciais e outras iniciativas odiadas por muita gente que faz oposição ao atual governo
- Odeio o Joaquim Barbosa e o Lewandowski (o magistrado; do centroavante eu gosto)
- Defendo a liberdade de escolha da mulher em relação ao aborto, e a oferta de medicamentos/procedimentos pelo SUS às que fazem esta opção
- Sou contra a pena de morte em qualquer circunstância. Também sou contra a redução da maioridade penal (mas topo discutir algumas possibilidades)
- Defendo a descriminalização da maconha
- Sou contra voto obrigatório e financiamento privado de campanhas políticas
- Defendo voto distrital e uma ampla reforma no sistema político
- Não tenho tesão nenhum por Cuba nem pelos EUA. Mas já visitei este último, e adorei. E não pretendo visitar Cuba
- Sou contra a Copa do Mundo no Brasil
- Acho que a Petrobrás tem problemas, mas que nunca foi tão forte quanto no governo do PT
- Acredito que para chegar a qualquer cargo eletivo o cidadão tem que ser no mínimo conivente com crimes

Então, já fomos apresentados. Seja bem-vindo, venha de onde vier. Se tiver mais alguma pergunta, pode fazer nos comentários.


segunda-feira, 21 de abril de 2014

Lula e o SUS

Você pode amá-lo ou odiá-lo, e é dificil achar quem esteja no meio termo. Lula é, sem sombra de dúvidas, a maior figura política da história recente deste país, e como presidente sua dimensão histórica está no nível de Juscelino Kubitschek ou de Getúlio Vargas. Sua aprovação popular é tão grande que elegeu sua sucessora sem maiores dificuldades mesmo com a inexperiência política dela, e seu nome ainda é aclamado pelos que desejam uma eleição presidencial mais fácil para o PT (pois ao que parece, Dilma não enfrentará calmaria nos próximos meses).

Por sua influência sobre o partido do governo e sobre a própria presidente da república, e por ter seu nome insistentemente envolvido na eleição deste ano, acho que os posicionamentos dele sobre temas vitais para a sociedade brasileira merecem uma análise bastante cuidadosa.

Lula chamou blogueiros que apoiam o governo e o seu partido para uma conversa, uma entrevista coletiva. Ela pode ser vista na íntegra no YouTube, mas recomendo que quem se interesse veja por partes para pegar direitinho a opinião sobre cada tema.

Ainda não assisti tudo, me detive à parte em que ele fala da saúde. E fiquei assombrado.

Recomendo que você assista a essa parte AQUI antes de seguir com a leitura, para poder se situar em relação ao que vou comentar. E claro, formar sua opinião antes de ler a minha.

Assistiu? Ótimo. Então vamos lá.

Ele começa dizendo que conhece "os três níveis de tratamento que tem o ser humano neste país", que seriam o SUS (que na época em que ele menciona ter usado era INAMPS, e era MUITO diferente), os planos de saúde mais baratos e o privado representado pelo Sírio-Libanês. Depois emenda dizendo que os planos de saúde não vão resolver o problema deste país. Até agora tudo ótimo.

Emenda que sempre insistiu com seus ministros da Saúde que "não é possível levar saúde de qualidade às pessoas se não tiver dinheiro", numa referência ao subfinanciamento do SUS. Melhorou, não foi?

Aí vem a primeira pedrada: "Para dar acesso à alta complexidade e aos especialistas, precisa de dinheiro". Opaaaaa!!!! Ao falar de saúde de qualidade a menção que se faz é à "alta complexidade e aos especialistas". Claro que precisamos dele sim, talvez o Lula tenha esquecido que, alinhado com os sistemas de saúde de maior qualidade no mundo, o SUS foi planejado em torno da Atenção Primária e de bons médicos generalistas (aqui no Brasil chamados de Médicos de Família e Comunidade). Vai ver que ele corrige isso mais na frente na entrevista.

Daí ele emenda críticas ao fim da CPMF, no que eu concordo plenamente com ele. Mas olha o que ele diz: "ao acabar com a CPMF, eles tiraram, só naquele ano, o equivalente a 50 bilhões da saúde". Beleza.

No meio da fala ele menciona o subsídio aos planos de saúde privados, através de dedução no IR, e o classifica como "um privilégio que nós temos e que o pobre não tem". Aí quando eu penso que ele vai colocar isso como um problema que deve ser resolvido, vem outra pedrada: "quando eu vou no Sírio Libanês (sempre ele, nota minha) fazer check-up, eu chego lá, os melhores médicos e as melhores máquinas!"

(este que vos escreve vai ali ter uma convulsão de desgosto e volta em instantes)

(continuando)

Olhem a descrição extremamente real que ele dá: "pra fazer um check-up hoje ninguém pergunta mais o que você tem, se tá com dor de barriga, tá indo ao banheiro, tá urinando bem, ninguém pergunta mais isso! Chega lá, o cara fala 'máquina 1: Pá', 'máquina 2: pá', máquina 3: pá'. Você passa numa série de máquinas, tira exame de sangue, e o cara te dá o resultado: você tá bom ou tá mal". Quando eu achei que, num surto de lucidez, ele ia CRITICAR este modelo, ele emenda: "o povo não tem acesso a isso, e se a gente não tiver dinheiro, a gente nunca vai fazer com que ele tenha."

(só mais uma convulsãozinha, ok?)

Quer dizer que o dinheiro a mais que ele defende para o SUS é pra ISSO???? Pra dar acesso a ISSO???? Lula, sinceramente, NÃO, OBRIGADO. Esta porcaria de modelo de check-up que você acha a coisa mais linda na verdade é um grande embuste. Sei que você viajou bastante durante seu mandato, e talvez tenha aproveitado pra ver muita coisa, mas seguramente você não aprendeu nada sobre sistemas de saúde por aí.

Seguindo: "as pessoas falam: 'ah, mas é falta de gestão'. Possivelmente tem um pouco de gestão, mas (o problema) é dinheiro de verdade". Não, companheiro. O problema de gestão é IMENSO. E reside na falta de qualificação generalizada dos gestores do SUS, agravada pela municipalização da gestão. Vocês sabiam que pelo menos metade dos secretários municipais de saúde não tem nem curso superior na área, ou pelo menos em administração? Que eu já vi até motorista de ambulância indicado como secretário de saúde por conveniência político-partidária? Não adianta aumentar o financiamento sem melhorar a gestão, senão vai ter mais dinheiro na mão de gestores ruins, ou seja, o dinheiro vai para o lixo (e uma parte para os bolsos de alguns).

Daí ele começa a falar do "Mais Médicos", dizendo que o programa provou que faltavam médicos no interior, que tem excesso de médicos na Avenida Paulista, essas coisas. Verdade. E emenda: "o Mais Médicos não resolve o problema, vai agravar o problema". Olha que bom. Mas como de costume, outra pérola: "Porque na hora em que a pessoa tiver acesso ao primeiro médico, vai precisar do primeiro especialista".

Uma demonstração de ignorância absoluta sobre o modo de funcionamento de um sistema como o SUS. Se o sistema é baseado na APS, então companheiro, 80 a 90% dos problemas serão resolvidos ali, no primeiro ponto de contato do usuário com o sistema. Serão resolvidos pelos médicos de família e comunidade e pelos demais membros das Equipes de Saúde da Família.

Não que a falta de especialistas não seja um problema. Mas quando o guru do partido que governa o país, ele próprio tendo sido presidente por 8 anos centraliza a solução da saúde em "mais dinheiro para dar acesso a mais especialistas" (ele ainda emenda algumas questões como credenciar a rede especializada do país para atender pelo SUS e em aumentar os honorários médicos), vocês não acham que tem algo errado?

Ele ainda chega a dizer que "praticamente não existe mais clínico geral, todo mundo é especialista em algo, EU NEM SEI SE É BOM OU É RUIM. DEVE SER BOM. O povo deve ter acesso a isso". Ter acesso a isso é ruim, companheiro. Ter a maioria dos médicos como especialista é ruim, companheiro. E saber disso é o mínimo que se espera de alguém que estuda o que acontece no mundo pra poder entender o próprio país.

A ignorância de um ícone como Lula em relação ao que deveria ser o SUS, a quais foram as disputas que deram a ele o formato que tem, o desconhecimento da figura do Médico de Família e Comunidade, o esquecimento da Estratégia Saúde da Família (nem sequer mencionados em mais de 10 minutos de fala sobre a saúde no Brasil. O homem só falou em hospital) mostram que o futuro do SUS, ao contrário do que ele prega, é sombrio. A não ser, claro que um dos candidatos faça uma fala diferente da que ele fez com os companheiros blogueiros. O que eu duvido muito.

p.s. Ele ainda teve a cara de pau de reclamar dos estados em relação à Emenda 29. Só não mencionou que o governo Dilma e sua passe de apoio no congresso trabalharam para retirar da emenda a obrigação do governo federal de investir pelo menos 10% do PIB na saúde, mas mantiveram os percentuais dos estados (12%) e municípios (15%). E ainda que Dilma vetou a possibilidade de que revisões positivas no cálculo da variação do PIB significassem mais dinheiro pro orçamento da saúde.


quarta-feira, 2 de abril de 2014

Aquela pipoquinha...

Entra no consultório uma senhora de 90 anos, numa cadeira de rodas, trazida por sua neta. Como de costume, quem fala é a neta, pois parece que há uma espécie de norma social que diz que idosos não podem falar por si. Pergunto o motivo da consulta, e ela responde que a avó tem diabetes e que a glicose estava alta esses dias, descobriram após "aquele exame de furadinha no dedo". Complementa que a avó também tem hipertensão, e que toma alguns medicamentos, trazidos naquela velha sacolinha de supermercado.

Me viro para a vovó, sorrio, e pergunto como ela está. Ela sorri de volta e diz: "Tô bem, doutor". Pergunto se ela come bem, se dorme bem, se tem sentido algum problema, e antes que ela responda a neta diz: "Doutor, ela adora comer pipoca. Diga a ela que não pode!".

***Se eu chegar aos noventa anos, amigos, vocês podem ter uma certeza: eu comerei o que eu quiser, na hora que quiser, do jeito que quiser (e tiver alcance pra pegar). Nem tentem impedir. ***

Enfim, digo a ela que pode comer a pipoquinha dela, só tem que ter cuidado pra não engasgar porque sabe como é, pipoca engasga. "Todo dia, doutor?", pergunta a neta, assustada. "Sim, todo dia. Desde que não substitua refeições. E tenta comer com pouco sal, ok?".

A vovó de repente dá um sorriso, agradece. A neta emenda: "Eita que tem gente que ficou feliz, né, vó?". E sorri também.

Fiz as velhas desprescrições de sempre (pantoprazol usando há 2 anos sem qualquer queixa relacionada ao estômago, tomando três medicamentos para a hipertensão e estava com pressão 12 x 8, tomando aquele velho remédio pra "baixar os triglicerídeos")...normalmente tirar os remédios é a parte que me deixa mais satisfeito durante uma consulta assim, porque é visível o alívio da pessoa quando é informada de que não precisa tomar tanta coisa. Mas nessa consulta, nem foi o melhor.

Bom mesmo foi liberar a pipoquinha pra vozinha de 90 anos. Vou pra casa com aquele sorriso dela na cabeça.