A presidente anunciou na última sexta que iria "trazer de imediato milhares de médicos do exterior para ampliar o atendimento do SUS". Ontem, em reunião com os prefeitos e governadores, ela voltou ao tema, mas falou de forma mais amena, e inserido em outras propostas. Vou listá-las abaixo, e comentar uma por uma.
1) Ampliar a adesão dos hospitais filantrópicos ao programa que troca dívidas por mais atendimento
2) Incentivar a ida de médicos aos locais que mais precisam
3) Medidas para melhorar as condições físicas da rede de atendimento
4) Ampliação das vagas em cursos de medicina (11.447 novas vagas) (*até 2017)
5) Ampliação da formação de especialistas (12.376 novas vagas de residência) (*até 2017)
Então vamos lá, não necessariamente na ordem de apresentação:
- Hospitais filantrópicos: o programa é bom, mas muitas vezes os serviços oferecidos não se encaixam nas prioridades do sistema. Por exemplo, vamos supor que um hospital filantrópico tenha dívidas, e uma forte tradição em serviços de cardiologia. Por incrível que pareça, não temos necessidades grandes em todas as especialidades. Vamos supor que neste determinado local a necessidade de cardiologistas na rede do SUS esteja atendida com o que já existe na rede. Se o hospital só pode oferecer isso, será aceito, privilegiando o pagamento da dívida em relação às reais necessidades do sistema? Não estou acusando a proposta de fazer isso, só estou fazendo um alerta sobre problemas na execução. Se hospitais tem dívidas, elas devem ser pagas. Ponto. Se a oferta de serviços for compatível com as necessidades, ótimo, se não, que as dívidas sejam pagas de outra maneira. Até porque tem uns "filantrópicos" (com aspas mesmo) por aí que não costumam ter muito problema com dinheiro...
- Ampliação da formação de especialistas: a ampliação das vagas de residência com o objetivo de zerar o déficit para os recém-formados é muito boa, até porque vai permitir que em médio prazo a gente possa exigir residência médica para qualquer médico no SUS, o que só vai trazer benefícios à população. Mas fica uma grande pergunta: quantas vagas para cada especialidade? De novo, as necessidades da população devem ser consideradas. Países que buscam ter sistemas universais centrados na Atenção Primária (como é o caso do Brasil, pelo menos no papel e na cabeça de muita gente) necessariamente precisam direcionar a formação de especialistas para os que preencham estes serviços. Deveríamos ter 30, 40% das vagas de residência médica para formar Médicos de Família e Comunidade, hoje não chegamos nem a 5%. Outras especialidades sofrem com falta de médicos, como a psiquiatria, a neurologia, a ortopedia. Se a ampliação de vagas for pra atender a estas necessidades, ótimo. Se não for orientada por isso, é um tiro na água.
E outra coisa, a residência médica é reconhecidamente um dos grandes fatores relacionados à fixação de médicos. Então essas vagas terão que ser criadas no interior do país. O que exige preceptores de residência, estratégias de educação à distância, integração com universidades, fortalecimento de unidades de saúde+ensino...
- Ampliação das vagas em cursos de graduação em medicina: é óbvio que precisamos de mais médicos, mas formá-los sem uma política de interiorização é igual a acentuar os problemas de concentração que já temos hoje. Estas vagas devem ser criadas preferencialmente fora dos grandes centros urbanos. Isso significa uma necessidade enorme de investimento em universidades que atuem em cidades menores. E como isso vai ser feito? Queria muito saber, pois a carreira universitária ainda é pouco atrativa para médicos por causa principalmente da remuneração/dedicação exclusiva. Algumas universidades federais inclusive já superam este modelo, mas ainda falta muito para pensarmos em uma política real de interiorização da graduação em medicina.
- Melhoria da estrutura física: o governo já tem um programa bem interessante de reforma e construção de unidades de saúde da família, que precisa apenas ser ampliado ($$$$) e ter sua execução fiscalizada mais de perto. Uma alternativa seria deixar isso com os estados, pois atualmente o MS libera o dinheiro direto para os municípios e depois não tem perna pra acompanhar a execução, enquanto os estados ficam meio sem o que fazer no processo. Se a liberação de recursos fosse vinculada à adesão estadual (com aporte de recursos por parte do estado também) poderíamos ter mais agilidade na execução, mais recursos disponíveis e projetos mais próximos de um padrão regional. Essa medida depende muito da vontade política e capacidade de articulação com os municípios e estados.
- E por último (numa tentativa de segurar os leitores até o final...) vamos falar do incentivo à ida dos médicos para os locais que mais precisam. O governo já recuou várias vezes: antes eram 6 mil médicos cubanos, depois a prioridade virou Portugal e Espanha e o número sumiu, até que agora dizem que as vagas serão oferecidas primeiramente aos brasileiros, e quando vierem estrangeiros passarão por uma espécie de avaliação. O governo acerta quando aponta que precisamos de médicos (ao contrário das entidades médicas, que se baseiam no argumento de que "temos o dobro de médicos preconizado pela OMS", o que é mentira porque a OMS jamais se pronunciou em relação a um número mágico, recomendando análises de necessidades e estruturas locais para se chegar ao número para cada país). Mas ao apresentar mais números, o governo se perde, porque tenta justificar a vinda de estrangeiros pelo argumento de que o percentual de médicos estrangeiros no Brasil em relação ao total de médicos é pequeno em relação a outros países como Inglaterra, Austrália, Canadá e etc (mas não menciona que nesses lugares a revalidação do diploma é exigida, ao contrário do que querem fazer aqui com as chamadas autorizações especiais).
Mas pra mim o pior foi ler o seguinte: "O médico estrangeiro terá uma autorização especial para atuar somente em áreas prioritárias e só poderá exercer a atenção básica (ou seja, ele não vai poder realizar procedimentos mais complexos como cirurgias, por exemplo)". Essa é de matar. Primeiro porque médico com atuação limitada é "meio-médico", e não é disso que o Brasil precisa. Segundo porque não reconhece a extrema complexidade que envolve o trabalho de um médico de família, e o coloca como um profissional limitado, simples. A Atenção Primária, exatamente por se propor a cuidar das pessoas e resolver pelo menos 80% dos problemas apresentados pelas pessoas é um cenário bastante difícil, e é onde deveriam estar os melhores médicos, não os "limitados", com "autorização especial". Esse ponto da proposta pra mim equivale a uma cuspida na cara, me desculpem o extremo.
Enfim, entre as propostas da presidente as que menos me agradam são as da Saúde. A pergunta que me faço é se isso é porque são as piores mesmo ou se é por eu entender um pouquinho do assunto é que consigo enxergar os defeitos. E nesse caso, o que dizer das demais?
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