quinta-feira, 30 de janeiro de 2014

Vacina contra o HPV: a discussão avança!!!

Gente, essa semana foi intensa. Como muitos de vocês devem saber, o texto anterior publicado aqui sobre a vacina contra o HPV foi reproduzido na coluna da jornalista Cláudia Collucci no site da Folha de São Paulo. A repercussão foi sensacional, e gerou uma resposta da SBIm (Sociedade Brasileira de Imunizações).

Para entender melhor algumas polêmicas a gente precisa abordar algumas questões mais técnicas relacionadas à produção de evidências na medicina atual. Talvez o texto fique meio chato, mas o momento exige uma discussão um pouco mais aprofundada.

Condições como o câncer de colo uterino demoram muitos anos para aparecer (às vezes até 20 anos entre a lesão inicial e o câncer propriamente dito). Agora vamos imaginar os custos de se fazer uma pesquisa que estude o impacto de qualquer medida no surgimento do câncer. Seriam altíssimos, né?

Para isso os pesquisadores às vezes recorrem à análise de coisas que não são o objeto do estudo propriamente dito, mas sim etapas prévias. No jargão técnico são os chamados “desfechos intermediários”, ou “desfechos substitutos”. Para ficar mais claro, exemplifico. Imagine que queremos estudar se a vacina contra o HPV funciona contra o câncer (ou seja, o câncer é o desfecho real), mas precisamos de resultados em um ou dois anos no máximo (você sabe, time is money). Então podemos fazer o seguinte: dividimos um grupo de mulheres em dois subgrupos, vacinamos todas as mulheres de um dos subgrupos, e às do outro subgrupo damos um placebo. Depois de alguns tempo nós podemos verificar se surgiram lesões prévias ao câncer, como as neoplasias intraepiteliais de baixo ou alto grau (NIC), e aí poderemos comparar se a vacinação pode ser associada à redução da presença das NIC.

A redução da presença de NIC, neste caso, é um desfecho substituto. Ou seja, não podemos fazer afirmações sobre a redução do câncer, mas podemos DEDUZIR que reduzindo as NIC reduziremos o câncer, não é? Podemos. O que nós seguramente NÃO podemos fazer é extrapolar os dados. Por exemplo, vamos dizer que no nosso estudo hipotético tivemos uma redução de 90% na presença do NIC. De forma alguma podemos dizer que a vacina reduz 90% dos cânceres de colo uterino porque a presença de NIC não significa câncer (na verdade, a imensa maioria das lesões induzidas pelo HPV, incluindo as NIC, desaparecem sem qualquer intervenção externa em até dois anos).

Parece óbvio, né? Mas é esse tipo de argumentação que muitos usam para apresentar os benefícios da vacina. Quando a SBIm fala que “enfatiza a importância da vacinação contra o HPV na prevenção não apenas do câncer de colo uterino”, ela se baseia em estudos que analisaram desfechos substitutos, não desfechos reais. Em português claro: não existem estudos robustos o suficiente para sustentar a afirmação da SBIm (e de mais um monte de gente).

Aí você me pergunta: “então você não acredita que a vacina possa ser capaz de prevenir o câncer?” Claro que acredito. Mas o “tamanho” desta prevenção ainda não me parece suficiente para justificar o investimento. Precisamos estudar mais a vacina para entendê-la melhor. E isso leva tempo. Mas pra que passar mais de 10 anos pesquisando, gastando milhões, se a indústria pode usar desfechos intermediários, diminuir os custos e ganhar muito dinheiro AGORA?

E aí vem o gancho pra chamar nosso amigo Papanicolau novamente. Durante a semana eu li o Secretário de Vigilância à Saúde do Ministério da Saúde, Jarbas Barbosa, com quem tive oportunidade de debater o assunto através do Facebook, dizendo que eu estava “contrapondo estratégias complementares (o Papanicolau e a vacinação)”. Aliás, palavras parecidas com as usadas pela SBIm (“trata-se de estratégias complementares, não excludentes”).
Acusação injusta. Eu concordo que a vacinação e o Papanicolau são complementares. Seria ótimo ter uma vacina de grande efetividade, e o Papanicolau servindo como uma oportunidade de pegar os casos que escapassem às vacinas. O problema é que este modelo tem uma chance real de não ser tão bom assim na prática: não temos boas coberturas do Papanicolau, e muito disso se deve à falta de interesse de muitas mulheres em fazer os exames. Pense comigo: se já há um interesse menor do que o ideal em fazer um exame que te proteja do câncer, o que acontecerá com este interesse se você tomar uma vacina que supostamente te dê proteção contra o câncer? Pra mim a lógica é que este interesse caia, imagino que as mulheres se sentirão mais protegidas. E eu nem digo que o que apenas acho deva ser a verdade, só acho que é um efeito interessante a ser estudado antes de se investir numa estratégia nova (e cara). Será que não caberia investir todo esse recurso e esse marketing no Papanicolau, criando uma cultura real de prevenção cuja efetividade está muitíssimo bem documentada, há muito tempo?
Aí podemos comentar de novo sobre a eficácia das vacinas. Precisamos primeiro, esclarecer a diferença entre eficácia e efetividade. Quando a SBIm coloca que a eficácia das vacinas já foi atestada, ela diz apenas que em condições controladas, a vacina teve resultados favoráveis. E o que são condições controladas? Imagine que para pesquisar sobre a vacina, os pesquisadores precisam minimizar os efeitos de qualquer coisa que possa atrapalhar a vacina. Um exemplo: as mulheres não precisam se lembrar de tomar a segunda dose; a própria equipe de pesquisa toma a inciativa de garantir a aplicação. Não existe, num estudo controlado, a possibilidade de faltar a vacina no dia da aplicação, porque a equipe de pesquisa garante o abastecimento. Um acompanhamento rigoroso é feito para evitar que as mulheres tomem medicamentos que possam interferir na resposta imunológica a ser desencadeada pela vacina. E por aí vai. Eficácia, então, seria o resultado no “mundo perfeito” para o pesquisador, tudo controladinho para facilitar ao máximo a observação desejada sem interferências. Mas no mundo real, as coisas podem funcionar diferente. O efeito do tratamento em condições “reais” é chamado efetividade. Ou seja, mesmo considerando que a vacina seja eficaz contra o câncer (e sabemos que ela não é, mas vamos deixar de lado os desfechos intermediários por enquanto...), ainda não sabemos se ela é tão efetiva assim. Ficou mais fácil de entender?
Mas vamos falar de eficácia então. Ao comentar a eficácia em pessoas que já iniciaram atividade sexual, a SBIm defende a vacinação destas pessoas alegando que existem benefícios. Deixa eu transcrever a informação do próprio fabricante ao comentar a ausência de resultados em pessoas com exposição prévia ao HPV (quem quiser conferir pode acessar aqui, página 18): “There is no expected efficacy since GARDASIL has not been demonstrated to provide protection against disease from vaccine HPV types to which a person has previously been exposed through sexual activity”. Em tradução livre: “Não era esperada eficácia uma vez que GARDASIL não demonstrou promover proteção contra doenças causadas por tipos do HPV aos quais a pessoa tenha sido previamente exposta através de atividade sexual”.
Em mulheres com idade entre 16 e 26 anos, a eficácia da vacina na redução de lesões intraepiteliais de alto grau relacionadas aos tipos de HPV existentes na vacina (uma das lesões precursoras do câncer) foi de 97,4% em mulheres sem exposição prévia ao vírus. Bom, né? Mas quando foi estudado o impacto no conjunto de lesões relacionadas a qualquer tipo de HPV a eficácia no mesmo grupo foi apenas 42,7%. (lembra a diferença entre “mundo perfeito” e “mundo real”? Olha ela aqui.). Quando foi observado o grupo inteiro (ou seja, expostas E não expostas ao vírus) a eficácia era de apenas 51,8% para lesões relacionadas aos tipos existentes na vacina, e de ridículos 18,4% para lesões causadas pelo HPV em geral. (Os dados estão no mesmo documento mencionado acima, páginas 18 e 20).
Agora, uma correção ao meu texto. Eu havia afirmado que “a eficácia havia sido verificada apenas em meninas sem vida sexual”. A SBIm apontou o equívoco, relatando que “os estudos que permitiram o licenciamento da vacina incluíram também mulheres com vida sexual ativa”. De fato, incluíram, mas como demonstrei acima, se há vida sexual e exposição ao HPV, a eficácia despenca. E ao checar a informação para poder corrigí-la, descobri o seguinte: na verdade, os estudos completos de eficácia só foram feitos em mulheres com MAIS de 16 anos. Sabem por que? Porque estes estudos envolvem coleta de amostras do colo uterino e da mucosa vaginal, o que não foi fácil de fazer nas meninas. Então nelas a eficácia foi medida apenas pelo tamanho da resposta imunológica induzida pela vacina, em amostras de sangue. Se eu reclamava de desfechos intermediários, o que dizer deste desfecho...”inicial”? Dizer que a vacina é eficaz em meninas menores de 16 anos parece mero exercício de criatividade.
E pra concluir, que eu já escrevi demais: a SBIm disse que meu texto anterior “não contribui para o esclarecimento adequado da população a respeito da doença e suas formas de prevenção, justamente no momento em que o programa Nacional de Imunização (PNI) se prepara para a disponibilização dessa importante vacina para as meninas brasileiras”. Sobre isso, só dá pra dizer que QUALQUER debate sobre o assunto contribui para o esclarecimento. Toda a minha admiração à Cláudia Collucci, que está promovendo esta discussão em sua coluna. Sigamos discutindo.


sexta-feira, 24 de janeiro de 2014

Vacina contra o HPV: sim ou não?

O governo brasileiro optou por incluir a vacina contra o HPV no calendário nacional de imunizações, e já tem feito campanha para a sua utilização. Eu tenho feito vários comentários sobre o assunto nos últimos meses, e os mais recentes geraram muitas dúvidas entre muitos amigos. Assim, achei por bem resumir alguns pontos aqui no blog para facilitar a divulgação das informações.

Quando a gente pensa na possibilidade de tomar uma vacina para evitar uma doença, eu considero que devemos fazer duas perguntas:
1) Já temos alguma estratégia efetiva na prevenção da doença? O que a vacina traz de novo?
2) A vacina realmente funciona?
3) Ela é segura?
4) Vale a pena substituir a estratégia anterior pela vacina?

Então vou tentar organizar uma resposta para estas questões.

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Já temos alguma estratégia efetiva na prevenção do câncer de colo uterino?

Temos sim. E quase todo mundo conhece: é o famoso papanicolau, ou citopatológico cérvico-uterino (popularmente conhecido como "preventivo de câncer de colo").

O papanicolau consiste na obtenção de amostras de tecido do colo uterino para que sejam analisadas em microscópio, verificando se existem células alteradas na amostra. Entre estas alterações está o câncer. O exame é de fácil realização, muito barato (ao contrário da vacina), e o melhor: bastante confiável. É muito raro uma mulher apresentar câncer se realizar o papanicolau na periodicidade recomendada (anualmente, e após dois exames normais com intervalo de um ano, o exame passa a ser recomendado a cada três anos). Sabem por que? Porque o câncer de colo de útero é uma doença de evolução muito lenta (normalmente em torno de 10 anos), e o papanicolau permite que detectemos formas precursoras do câncer (ou seja, alterações na células que AINDA não são cânceres).

Ou seja, o papanicolau pode sim evitar que as mulheres cheguem a ter um câncer de colo uterino, pois permite o tratamento prévio de lesões que antecedem o câncer.

Aí você me pergunta: e todas as mulheres do país têm acesso ao exame? A resposta também é boa: têm sim. O exame é oferecido pelo SUS, e a coleta pode ser realizada em postos de saúde por enfermeiros, que recebem este treinamento durante a sua formação universitária. Quando um exame tem resultado anormal, o próprio enfermeiro ou um médico podem encaminhar a mulher a um serviço especializado onde seu problema será resolvido.

O papanicolau está recomendado para as mulheres de 25 a 64 anos, e deve ser realizado inclusive em mulheres que recebem a vacina, pois ela não protege contra todos os tipos de HPV (mais detalhes adiante).

Então, se temos um exame confiável, barato e disponível para todas as mulheres do país, o que nos faria mudar de estratégia, partindo para usar uma vacina que NÃO EXCLUI a necessidade de realizar o mesmo exame ao longo da vida? O que esta vacina traz de novo?

A vacina realmente funciona?

Depende. Para que? Vamos lá.

O HPV é um vírus transmitido através do contato sexual. Por isso, alguns pesquisadores tiveram uma idéia: se conseguíssemos evitar a infecção pelo HPV não teríamos mais câncer de colo uterino. Faz sentido, certo? Mas esta hipótese tem alguns probleminhas.

O primeiro problema desta hipótese está em como evitar a infecção. A transmissão do HPV é sexual, e basta o contato íntimo mesmo sem penetração para que a passagem do vírus aconteça. Então a melhor maneira de evitar a transmissão seria a abstinência sexual (tem até um estudo clássico neste tema que descobriu que freiras não têm câncer de colo uterino). Como a abstinência não costuma ser uma prática muito popular :) então a gente tem que pensar em outra coisa.

Considerando que o vírus vai acabar circulando mesmo por aí, a solução mais óbvia seria vacinar as pessoas contra ele. O problema é que o HPV possui mais de 100 subtipos, e as vacinas ainda não conseguem cobrir todos eles, embora cubram os principais. Isso significa que mesmo que a vacina proteja alguém contra os subtipos que ela cobre, ela ainda permite que outros subtipos provoquem o câncer. Ou seja, ela não dá 100% de certeza de que as mulheres não terão câncer de colo uterino. A propaganda não explica isso, né? Mas é por este motivo que a bula da vacina avisa que a vacinação não exclui a necessidade de que a mulher continue realizando o papanicolau (como eu tinha dito ali acima).

E tem mais: nem toda infecção pelo HPV provoca câncer. Na verdade, a minoria delas faz isso. Então mais importante do que se preocupar com a infecção, parece mais importante acompanharmos se a infecção evolui para lesões perigosas ou não, né? Ou seja: dá-lhe papanicolau nessa disputa, ganhando de lavada da vacina.

Outra coisa: a eficácia da vacina foi verificada apenas em meninas sem vida sexual. E o HPV é tão frequente na população que podemos dizer que se alguém já iniciou sua vida sexual, a chance de ter sido contaminado pelo vírus é de quase 100%. Ou seja, se a pessoa não é mais virgem, tomar a vacina não vai fazer nenhum efeito, porque a resposta que ela provoca no organismo não elimina os vírus que já estejam lá, apenas evitaria o contágio. No entanto, muitos médicos têm recomendado a vacina nestas pessoas, o que é contrário até às recomendações do próprio fabricante.

Nem vou discutir os efeitos da vacina na mortalidade, porque nem deu tempo ainda de estudarem isso direito. Como eu falei, o câncer de colo uterino é de evolução muito lenta, e acaba só sendo perigoso para mulheres que não fazem o papanicolau na periodicidade recomendada.

Mas aí algumas pessoas argumentam: "Poxa, ok, mas se ela evitar a infecção já faz algum benefício, né? Afinal de contas, mal não vai fazer."

Será? Vamos adiante.

Ela é segura?

Há alguma controvérsia. Apontando a segurança da vacina nós temos os estudos feitos pelos fabricantes e as recomendações do CDC (órgão do governo dos EUA). No entanto temos alguns casos de doenças mais graves, ao ponto de existirem processos correndo na França movidos por vítimas da vacina, e casos semelhantes levaram o governo do Japão a não mais recomendar a vacina. Doenças como síndrome de Guillain-Barré, falência ovariana, uveítes, além de sintomas como convulsões e desmaios têm sido associados à vacina, mas esta relação ainda não foi demonstrada em grandes estudos.

Então vamos supor que isso aconteça em uma menina a cada 30 mil que sejam vacinadas (a proporção é baseada nas notificações de efeitos adversos do CDC, chamada de VAERS, e está disponível na internet). Será que compensa o risco, mesmo que seja baixo, de ter uma doença grave, se a vacinação não é melhor do que a estratégia que temos hoje para controlar o câncer de colo uterino (o papanicolau)?

Vale a pena substituir a estratégia anterior pela vacina?

Pra mim não compensa. Só de imaginar uma filha minha com paralisias causadas por uma vacina dessas eu descarto a idéia rapidinho. Pretendo promover uma educação sexual boa para minhas filhas, para que saibam que precisam se proteger usando preservativo (até porque outros problemas como gravidez indesejada, HIV, hepatite B, entre outros, estão batendo na porta o tempo todo). E acima de tudo, demonstrar sempre a importância de fazer o papanicolau na periodicidade recomendada. Se conseguir, duvido que elas sofram deste mal. E sem essa vacina cara e suspeita. Minhas pacientes e suas famílias receberão a mesma recomendação.

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Espero que tenha ajudado. Se gostou divulgue. E se eu puder esclarecer mais alguma coisa, comenta aí embaixo! Pode corrigir ou acrescentar algo também!