Gente, essa semana foi intensa. Como muitos de vocês devem saber, o texto anterior publicado aqui sobre a vacina contra o HPV foi reproduzido na coluna da jornalista Cláudia Collucci no site da Folha de São Paulo. A repercussão foi sensacional, e gerou uma resposta da SBIm (Sociedade Brasileira de Imunizações).
Para entender melhor algumas polêmicas a gente precisa abordar algumas questões mais técnicas relacionadas à produção de evidências na medicina atual. Talvez o texto fique meio chato, mas o momento exige uma discussão um pouco mais aprofundada.
Condições como o câncer de colo uterino demoram muitos anos para aparecer (às vezes até 20 anos entre a lesão inicial e o câncer propriamente dito). Agora vamos imaginar os custos de se fazer uma pesquisa que estude o impacto de qualquer medida no surgimento do câncer. Seriam altíssimos, né?
Para isso os pesquisadores às vezes recorrem à análise de coisas que não são o objeto do estudo propriamente dito, mas sim etapas prévias. No jargão técnico são os chamados “desfechos intermediários”, ou “desfechos substitutos”. Para ficar mais claro, exemplifico. Imagine que queremos estudar se a vacina contra o HPV funciona contra o câncer (ou seja, o câncer é o desfecho real), mas precisamos de resultados em um ou dois anos no máximo (você sabe, time is money). Então podemos fazer o seguinte: dividimos um grupo de mulheres em dois subgrupos, vacinamos todas as mulheres de um dos subgrupos, e às do outro subgrupo damos um placebo. Depois de alguns tempo nós podemos verificar se surgiram lesões prévias ao câncer, como as neoplasias intraepiteliais de baixo ou alto grau (NIC), e aí poderemos comparar se a vacinação pode ser associada à redução da presença das NIC.
A redução da presença de NIC, neste caso, é um desfecho substituto. Ou seja, não podemos fazer afirmações sobre a redução do câncer, mas podemos DEDUZIR que reduzindo as NIC reduziremos o câncer, não é? Podemos. O que nós seguramente NÃO podemos fazer é extrapolar os dados. Por exemplo, vamos dizer que no nosso estudo hipotético tivemos uma redução de 90% na presença do NIC. De forma alguma podemos dizer que a vacina reduz 90% dos cânceres de colo uterino porque a presença de NIC não significa câncer (na verdade, a imensa maioria das lesões induzidas pelo HPV, incluindo as NIC, desaparecem sem qualquer intervenção externa em até dois anos).
Parece óbvio, né? Mas é esse tipo de argumentação que muitos usam para apresentar os benefícios da vacina. Quando a SBIm fala que “enfatiza a importância da vacinação contra o HPV na prevenção não apenas do câncer de colo uterino”, ela se baseia em estudos que analisaram desfechos substitutos, não desfechos reais. Em português claro: não existem estudos robustos o suficiente para sustentar a afirmação da SBIm (e de mais um monte de gente).
Aí você me pergunta: “então você não acredita que a vacina possa ser capaz de prevenir o câncer?” Claro que acredito. Mas o “tamanho” desta prevenção ainda não me parece suficiente para justificar o investimento. Precisamos estudar mais a vacina para entendê-la melhor. E isso leva tempo. Mas pra que passar mais de 10 anos pesquisando, gastando milhões, se a indústria pode usar desfechos intermediários, diminuir os custos e ganhar muito dinheiro AGORA?
E aí vem o gancho pra chamar nosso amigo Papanicolau novamente. Durante a semana eu li o Secretário de Vigilância à Saúde do Ministério da Saúde, Jarbas Barbosa, com quem tive oportunidade de debater o assunto através do Facebook, dizendo que eu estava “contrapondo estratégias complementares (o Papanicolau e a vacinação)”. Aliás, palavras parecidas com as usadas pela SBIm (“trata-se de estratégias complementares, não excludentes”).
Acusação injusta. Eu concordo que a vacinação e o Papanicolau são complementares. Seria ótimo ter uma vacina de grande efetividade, e o Papanicolau servindo como uma oportunidade de pegar os casos que escapassem às vacinas. O problema é que este modelo tem uma chance real de não ser tão bom assim na prática: não temos boas coberturas do Papanicolau, e muito disso se deve à falta de interesse de muitas mulheres em fazer os exames. Pense comigo: se já há um interesse menor do que o ideal em fazer um exame que te proteja do câncer, o que acontecerá com este interesse se você tomar uma vacina que supostamente te dê proteção contra o câncer? Pra mim a lógica é que este interesse caia, imagino que as mulheres se sentirão mais protegidas. E eu nem digo que o que apenas acho deva ser a verdade, só acho que é um efeito interessante a ser estudado antes de se investir numa estratégia nova (e cara). Será que não caberia investir todo esse recurso e esse marketing no Papanicolau, criando uma cultura real de prevenção cuja efetividade está muitíssimo bem documentada, há muito tempo?
Aí podemos comentar de novo sobre a eficácia das vacinas. Precisamos primeiro, esclarecer a diferença entre eficácia e efetividade. Quando a SBIm coloca que a eficácia das vacinas já foi atestada, ela diz apenas que em condições controladas, a vacina teve resultados favoráveis. E o que são condições controladas? Imagine que para pesquisar sobre a vacina, os pesquisadores precisam minimizar os efeitos de qualquer coisa que possa atrapalhar a vacina. Um exemplo: as mulheres não precisam se lembrar de tomar a segunda dose; a própria equipe de pesquisa toma a inciativa de garantir a aplicação. Não existe, num estudo controlado, a possibilidade de faltar a vacina no dia da aplicação, porque a equipe de pesquisa garante o abastecimento. Um acompanhamento rigoroso é feito para evitar que as mulheres tomem medicamentos que possam interferir na resposta imunológica a ser desencadeada pela vacina. E por aí vai. Eficácia, então, seria o resultado no “mundo perfeito” para o pesquisador, tudo controladinho para facilitar ao máximo a observação desejada sem interferências. Mas no mundo real, as coisas podem funcionar diferente. O efeito do tratamento em condições “reais” é chamado efetividade. Ou seja, mesmo considerando que a vacina seja eficaz contra o câncer (e sabemos que ela não é, mas vamos deixar de lado os desfechos intermediários por enquanto...), ainda não sabemos se ela é tão efetiva assim. Ficou mais fácil de entender?
Mas vamos falar de eficácia então. Ao comentar a eficácia em pessoas que já iniciaram atividade sexual, a SBIm defende a vacinação destas pessoas alegando que existem benefícios. Deixa eu transcrever a informação do próprio fabricante ao comentar a ausência de resultados em pessoas com exposição prévia ao HPV (quem quiser conferir pode acessar aqui, página 18): “There is no expected efficacy since GARDASIL has not been demonstrated to provide protection against disease from vaccine HPV types to which a person has previously been exposed through sexual activity”. Em tradução livre: “Não era esperada eficácia uma vez que GARDASIL não demonstrou promover proteção contra doenças causadas por tipos do HPV aos quais a pessoa tenha sido previamente exposta através de atividade sexual”.
Em mulheres com idade entre 16 e 26 anos, a eficácia da vacina na redução de lesões intraepiteliais de alto grau relacionadas aos tipos de HPV existentes na vacina (uma das lesões precursoras do câncer) foi de 97,4% em mulheres sem exposição prévia ao vírus. Bom, né? Mas quando foi estudado o impacto no conjunto de lesões relacionadas a qualquer tipo de HPV a eficácia no mesmo grupo foi apenas 42,7%. (lembra a diferença entre “mundo perfeito” e “mundo real”? Olha ela aqui.). Quando foi observado o grupo inteiro (ou seja, expostas E não expostas ao vírus) a eficácia era de apenas 51,8% para lesões relacionadas aos tipos existentes na vacina, e de ridículos 18,4% para lesões causadas pelo HPV em geral. (Os dados estão no mesmo documento mencionado acima, páginas 18 e 20).
Agora, uma correção ao meu texto. Eu havia afirmado que “a eficácia havia sido verificada apenas em meninas sem vida sexual”. A SBIm apontou o equívoco, relatando que “os estudos que permitiram o licenciamento da vacina incluíram também mulheres com vida sexual ativa”. De fato, incluíram, mas como demonstrei acima, se há vida sexual e exposição ao HPV, a eficácia despenca. E ao checar a informação para poder corrigí-la, descobri o seguinte: na verdade, os estudos completos de eficácia só foram feitos em mulheres com MAIS de 16 anos. Sabem por que? Porque estes estudos envolvem coleta de amostras do colo uterino e da mucosa vaginal, o que não foi fácil de fazer nas meninas. Então nelas a eficácia foi medida apenas pelo tamanho da resposta imunológica induzida pela vacina, em amostras de sangue. Se eu reclamava de desfechos intermediários, o que dizer deste desfecho...”inicial”? Dizer que a vacina é eficaz em meninas menores de 16 anos parece mero exercício de criatividade.
E pra concluir, que eu já escrevi demais: a SBIm disse que meu texto anterior “não contribui para o esclarecimento adequado da população a respeito da doença e suas formas de prevenção, justamente no momento em que o programa Nacional de Imunização (PNI) se prepara para a disponibilização dessa importante vacina para as meninas brasileiras”. Sobre isso, só dá pra dizer que QUALQUER debate sobre o assunto contribui para o esclarecimento. Toda a minha admiração à Cláudia Collucci, que está promovendo esta discussão em sua coluna. Sigamos discutindo.
2 comentários:
Parabéns Dr. Você me representa.
Oi Rodrigo, não vi se vc teve acesso a esse texto. Como chegou a mim por uma amiga, compartilho com você.
http://www.scielo.br/pdf/csp/v29s1/a04.pdf
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