segunda-feira, 18 de novembro de 2013

As pessoas e os protocolos

Domingo à noite, umas 20h. Entrada na urgência de um hospital privado superbonito, novinho. Acompanho minha mãe, com câncer em tratamento, chorando de dor. Deixo ela sentada e vou à recepção.

- Boa noite.
- (Recepcionista)Boa noite, senhor.
- Você pode me dar uma senha de atendimento?
- Claro!
(dá a senha)
- Opa. Ela tem 60 anos, é senha preferencial, né?
- É. Vou trocar.
(troca a senha)
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(painel chama a senha. Entramos na sala do enfermeiro da triagem/classificação de risco)
- Boa noite.
- (Enfermeiro) Boa noite. O que houve?
- Ela tá com muita dor.
- Onde dói?
- Ela tem câncer, tá com dores há alguns dias e o analgésico não tá dando conta.
- Ok. É diabética?
(enquanto isso, um técnico afere a pressão e mede a saturação de oxigênio)
- Não. É hipertensa. Mas tá controlada, toma os remédios.
(pressão deu 150 x 90)
- Tá alta a pressão.
- Então, como eu falei, ela tá com muita dor. Deve ser por isso que a pressão subiu.
- Ok. (pega uma pulseira verde e coloca no braço dela). É só aguardar lá fora, certo?
- Mas você classificou ela como verde? E a dor? Você nem aplicou régua de dor pra avaliar! Como classificar como verde? É isso mesmo?
- (Tom arrogante) É isso mesmo. Aguardem lá fora, por favor.
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(Dois minutos. Recepcionista chama para fazer o cadastro)
- Opa. Aqui, os documentos.
- Pois não. Olha, deixa eu te avisar que o atendimento está demorando porque só tem um clínico atendendo.
- Certo. Vê, ela tá com muita dor. O enfermeiro classificou como verde mas eu conheço o protocolo e sei que tá errado. Ela não vai aguentar esperar, tá chorando de dor ali. Ela tem câncer, tu sabe como são essas dores.
- Nossa. Ela não devia nem esperar aqui, o enfermeiro devia ter colocado ela lá dentro (na sala onde ficam os leitos de observação). Fulana, quem é o enfermeiro de hoje, é "fulano"?
(a colega da recepção confirma. Minha interlocutora faz um sinal de reprovação balançando a cabeça)
Faz assim, se demorar muito o senhor fala com ele novamente.
- Ok. Vou esperar um pouco.
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(Cinco minutos. Uma lágrima de dor. Vou à recepção novamente).
- Olha, eu vou entrar pra falar com o enfermeiro, tá? A bichinha tá mal, olha.
- Pode entrar, fale mesmo!
(a colega informa que ele não está na sala)
- E aí? Eu preciso que ele mude a classificação.
- Pode ir lá dentro, senhor.
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- (Vigilante) Pois não.
- Então, eu preciso falar com o enfermeiro mas ele não está na sala dele. A recepcionista autorizou minha entrada.
- Tudo bem. Ele tá naquela sala ali, pode bater lá.
(Bato na porta. Tento abrir. Trancada)
- Tá trancada a porta, véio.
- Oxe...ele deve ter ido jantar então.
- Tudo bem. Vê, eu entendo que ele tem o horário dele pra comer. Mas eu preciso falar com alguém que resolva meu problema (e conto o problema mais uma vez).
- Certo. Bora ali que tu fala com a enfermeira da observação.
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- Com licença, boa noite.
- (Enfermeira da observação). Boa noite.
- Olha, (e descrevo o problema da minha mãe e o que aconteceu no primeiro atendimento). Não dá pra esperar.
- Claro que não! Ela nem devia estar lá fora! Quem tá lá na frente, "sicrana"?
(Sicrana responde: É "fulano", e não parece muito empolgada ao mencioná-lo)
- (com ar de reprovação) Ok senhor, pode pedir ao maqueiro pra trazê-la pra cá, ok?
- Ok. Muito obrigado.
(daí pra frente: médica chegou rapidinho, atendeu, medicou, a dor passou, fomos pra casa)

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Isso foi ontem. "Fulano" retardou em pelo menos 20 minutos o atendimento a uma pessoa que estava chorando de dor, mesmo sendo avisado que seu procedimento estava errado.

Aconteceu num hospital privado. Novinho em folha. Chique no último. Nem tava tão cheia a urgência.

Aí eu te pergunto: qual o problema do sistema de saúde desse país? Quando foi que a gente começou a formar gente tão despreparada pra fazer uma coisa tão simples quanto aplicar um protocolo? Qualquer idiota consegue. Quer dizer, nem todos. Aquele idiota não.

Quando foi que alguns profissionais de saúde ficaram frios ao ponto de ignorar o sofrimento alheio em nome da preguiça?

Como dizia um amigo meu, "a sorte do SUS no Brasil é que o setor privado tem os mesmos problemas".

2 comentários:

Ana Carla Belfort disse...

Sabe, eu entendo perfeitamente seu sentimento, é de completo descaso com o ser humano!!! Dessa vez foi um enfermeiro, mas também poderia ser um médico. Eu sinceramente me sinto desamparada, mesmo tendo plano de saúde e tal... Os profissionais de saúde não pagaram várias cadeiras na faculdade: "olhar na cara do paciente", "empatia pelo ser humano", "escutar com os olhos e ouvidos o meu problema" etc. É triste dizer isso mas... aí de quem não tem um médico na família... pois só neles agente pode confiar... e mesmo os tendo ainda passamos por muitos aperreios... No Brasil o negócio melhor é NUNCA adoecer!!!

Mônica disse...

Falo direto isso onde trabalho, um bom profissional primeiramente tem a capacidade de se colocar no lugar do outro.
Fora q não era a mãe desse fdp.