Pra mim a melhor maneira de celebrar é mostrar mais como é o nosso cotidiano, então eu finalmente terminei a tradução de um texto sensacional publicado no mês passado por uma colega britânica chamada Zoe Norris.
O original está AQUI. A tradução é livre, não chancelada pela autora e quaisquer erros se devem à imperícia do tradutor, e nada mais.
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“Eu? Sou apenas uma MFC...”
Eu fui a uma reunião da turma da escolar há alguns anos. Quando
a conversa inevitavelmente seguiu sobre trabalho, e o que cada um estava
fazendo hoje em dia, o meu foi sem dúvidas o emprego menos excitante. “Você é
uma médica? Qual a especialidade?” Após o décimo comentário eu já queria mentir
e dizer que era uma cirurgiã fetal, que operava pequenos bebês antes do
nascimento, na linha de frente da tecnologia e do glamour medico, ou uma
pesquisadora inovadora, próxima de descobrir a cura do câncer. Talvez uma
neurocirurgiã, ou uma médica intensivista?
Eu me flagrei dizendo “sou apenas uma MFC”, e me encolhi em um
canto. Não existem MFC suficientes. Jovens médicos não pretendem fazer
residência em MFC. Com o estágio atual do NHS[*],
há muita mídia negativa sobre o futuro da MFC, e médicos jovens a consideram
uma especialidade insegura. Eles não sabem o que acontecerá nos próximos cinco
ou dez anos. Sabem apenas que a imprensa nos odeia, os políticos nos acenam e
depois nos ignoram, e isso os tem afastado da especialidade.
Ser um MFC não tem a ver com glamour. Não usamos equipamento de
alta tecnologia. Não se trata de pesquisas inovadoras, ou de gritar “me dê um
pouco de paracetamol, rápido!”. Existe muito pouco drama. Tem a ver com o
desafio de lidar com tudo em uma pequena porção de tempo. Com ter a habilidade
de se conectar instantaneamente com um paciente que você nunca viu antes. É
lidar com pessoas normais vivendo vidas normais, e com os problemas que as
afligem. Se você acha que está acima de tratar hemorroidas, indigestão,
candidíase, eczema, então não é trabalho para você. Se você acha que não
importa o quanto não-glamurosos estes problemas e seus tratamentos sejam, as
pessoas podem sofrer por causa deles, então talvez seja. Eu sou uma MFC e eu
posso cuidar destes problemas. Eu posso cuidar das pessoas. E embora não seja
sexy ou chame a atenção das pessoas, faz a diferença na vida dos meus
pacientes. Então eis um exemplo do tipo de paciente que eu costumo atender;
aquele para o qual eu faço a diferença. Normalmente com pequenos atos, mas atos
que são importantes para eles, e que me ajudam a lembrar porque eu escolhi este
trabalho.
A mulher de 70 anos que eu tratei por uma infecção urinária –
uma coisa tão simples de resolver. Na semana seguinte ela me trouxe um pedaço
de bolo, que ela guardou do aniversário de uma amiga, porque ela se sentiu bem
o suficiente para ir e me deu mais créditos por isso do que eu merecia.
A mãe que chorou de alívio quando eu a disse que ela não estava
fazendo nada de errado com seu novo bebê. Que bebês não dormem a noite inteira,
que ela não o faria mal abraçando-o longamente, e que ela está sendo brilhante
com seu bebê de oito semanas.
O veterano de guerra que veio semana passada com seu filho, e
achou que eu fui acolhedora o suficiente para retornar essa semana, admitindo
que tem tido pesadelos e lembranças constantes do seu serviço, mas que nunca
tinha dito isso a ninguém.
A senhora de meia-idade com sintomas da menopausa. Suas amigas
falaram sobre as ondas de calor, mas ninguém mais reclamou de dor durante a
relação sexual. Ela está preocupada, achando que não é normal. Conversamos
sobre as possibilidades de tratamento disponíveis para ajudá-la.
O garoto de 17 anos envergonhado por ter acne. Eu o disse que
poderia tratar o problema e que ele não precisaria mais lidar com isso; eu sei
que isso fará uma grande diferença.
O homem convencido de que tinha câncer – quando eu o disse que
era apenas um nódulo de gordura, ele pareceu prestes a chorar.
A criança de quatro anos que ouviu “comporte-se, ou o médico te
dará uma injeção”. Gasto 15 minutos convencendo-a de que não farei isso. Ela
correu e me deu um abraço no final de sua consulta.
A visita feita pela enfermeira à senhora que se queixava
de piscar os olhos. “Eu ficava irritada com todos aqueles velhos olhando para
mim”, ela me disse resmungando. Ela tem 98 anos.
O casal de 14 anos de idade que veio pedir ajuda para
evitar uma gravidez. Conversamos sobre todas as opções; os riscos e benefícios.
Ambos entenderam a decisão que haviam tomado, e eu os encorajei a voltar a qualquer
momento se tivessem outras dúvidas.
A senhora idosa que veio com um simples quadro de manchas na
pele. Quando eu perguntei se havia alguém que pudesse ajudá-la a aplicar um
creme nas suas costas, ela chorou. Começou a falar sobre o seu marido. Ele havia
morrido dois anos antes, e ela sente que já deveria “ter passado por cima
disso”. Ela se sente estranha por ainda falar nele para familiares e amigos,
pois todos eles já superaram a perda e ela não foi capaz disso. Eu disse que
ela nunca superará isso de verdade. Não tenho mais nada a oferecer além de
escutá-la.
O homem que entrou mancando após pisar em um vidro quebrado na
noite anterior. Ele tem medo de hospitais e por isso não procurou atendimento
de urgência, mesmo sabendo que deveria ter ido. Enquanto eu removo gentilmente
o vidro ele se encolhe o tempo todo e agradece por não obrigá-lo a ir ao
hospital. Minha tentativa de curativo é risível, mas ele sai bastante
satisfeito.
O abscesso que se rompe enquanto eu o examino – alívio
instantâneo para a paciente. Estranhamente satisfatório pra mim também.
O parente do paciente que após uma visita domiciliar me deu um
livro de poesias, porque imaginou que eu apreciaria os sentimentos contidos
nele.
O cartão de agradecimentos de um paciente viciado em tranquilizantes.
Quando nos conhecemos, eu me recusei a prescrever mais medicamentos e o induzi
a aceitar uma redução gradual. Achei que ele nunca mais voltaria. Ele nunca me
disse obrigado, mas resolveu escrever e me dizer como ele se sentia humano de
novo agora.
A professora dedicada, lutando contra uma depressão enorme e que
se recusa a tirar uma licença por medo de deixar seus alunos na mão. É uma das
poucas ocasiões em que eu assumo a postura “eu sou a sua médica e estou dizendo
que você precisa de uma licença”. É paternalista e eu odeio fazê-lo, mas às
vezes é necessário. Um mês depois ela está bem melhor e de volta ao trabalho,
mais entusiasmada do que nunca.
O homem com pressão alta, que aceitou os quatro novos
medicamentos que eu precisei prescrever para tentar controlar seu problema.
Cada uma delas trouxe efeitos colaterais e após dois meses estávamos de volta
ao ponto de partida. Enquanto me sentia culpada, ele dizia “não se preocupe,
doutora, você tentou fazer o melhor. O que mais podemos fazer?”. Deu vontade de
abraçá-lo.
A mulher de 19 anos de idade com constipação, assustada por
precisar de ajuda médica. Eu a disse que é meu problema favorito para cuidar,
porque é muito fácil de resolver. Ela aparenta estar aliviada enquanto eu
apresento as opções.
O paciente morador de rua que eu tenho tentado exaustivamente
ajudar, mas que é constantemente rejeitado porque nunca consegue agendar
consultas. O cartão que ele me trouxe significa mais do que quase tudo que eu
já recebi de um paciente. Eu sei o quanto custou para ele pensar nisso, comprar
um cartão, achar uma caneta, escrever o nome dele e o meu e trazer para mim.
Todos os pacientes em meu consultório que está sempre 45 minutos
atrasado, que não reclamam e dizem que está tudo bem, eles entendem que o dia está
corrido. Não existe nada mais estressante para mim, mas com alguns pacientes eu
não posso ter pressa. Eu não vou interromper pais em luto após perderem seu
bebê para manter minha agenda. Eu não posso fazer a ambulância vir mais rápido
para o homem com dores no peito. Eu não tenho controle sobre quanto tempo o
hospital leva para atender o telefone e me colocar em contato com o médico que
eu preciso consultar. Eu não me nego a ver um paciente com o qual a minha
enfermeira está preocupada. Eu faço o melhor que posso.
Estas são as pequenas coisas que fazer o meu dia-a-dia. Estão
além dos políticos, das manchetes de jornal, da negatividade. Breves amostras
de 10 minutos das vidas das pessoas para as quais eu tento fazer alguma
diferença. Na próxima vez em que eles ouvirem como os médicos de família são
ruins, eu espero que eles se lembrem da nossa consulta de hoje, e pensem em mim
de forma mais gentil. Talvez seja sim um trabalho glamuroso, no fim das contas.
Quando você soma todos os atendimentos, eu posso ter feito a diferença para
quase 40 pessoas hoje. Não são muitos os que podem dizer o mesmo.
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