O Ministério da Saúde repercutiu estudo publicado no Lancet que destacou a "evolução do Brasil no combate aos cânceres mais comuns".
Boas notícias, não?
Não necessariamente.
Vamos aos dados ressaltados pelo Ministério da Saúde. O estudo pode ser acessado no site do The Lancet.
"Segundo o estudo, a taxa de sobrevivência para o câncer de mama no Brasil aumentou de 78%, em 2000, para 87%, em 2005, mesmo percentual registrado em países como os Estados Unidos. Para o câncer de próstata, o índice foi ainda maior, chegando a 96% de sobrevivência, mais que o dobro se comparado à chance de sobrevivência no mundo, que é de 40%."
Primeiro a gente tem que definir o que seria "sobrevivência". A pesquisa trabalhou com a taxa de sobrevivência em cinco anos, ou seja, o percentual de pessoas que estavam vivas cinco anos após receberem o diagnóstico de câncer. O problema com esse indicador é que ele pode estar sendo mascarado por um problema importante, mas pouco discutido: o sobrediagnóstico.
Recomendo a leitura do seguinte texto: The Case Against Early Cancer Detection, de Christie Aschwanden. Nele, a autora fala sobre as velocidades diferentes de evolução de tumores diferentes, como isso pode estar relacionado com o fato de que os programas de rastreamento dificilmente conseguem demonstrar redução da mortalidade pelas doenças que pretendem combater, e que isso pode ser explicado pelo sobrediagnóstico do câncer, ou seja, pelo diagnóstico e tratamento de cânceres que não trariam problemas às pessoas supostamente beneficiadas pelo rastreamento.
Agora pense: se estamos diagnosticando mais cânceres sem diferenciar quais deles matariam e quais não, como isso pode se refletir na sobrevivência em cinco anos após o diagnóstico? Temos duas possibilidades:
- Diagnosticamos cânceres que matariam: logo, podemos tratá-los rapidamente e assim a taxa de sobrevivência aumenta;
- Diagnosticamos cânceres que não matariam: assim, incluiríamos na lista de "doentes" pessoas sem problemas, e o aumento da taxa de sobrevivência estaria "contaminado" por sobreviventes de doenças que não matariam; ou seja, não sobreviveram a nada, apenas inflaram as estatísticas.
Veja que o aumento na taxa de sobrevivência em cinco anos acontecerá de qualquer maneira após um programa de rastreamento, seja por de fato descobrirmos e tratarmos precocemente doenças letais, seja por diagnosticar gente que não deveria estar nesta lista.
Vamos a outro dado apontado pelo Ministério da Saúde:
Para o rastreamento da doença, a mamografia é o exame mais eficiente. Entre 2010 e 2013, houve aumento de 51,1% nos exames realizados pelo Sistema Único de Saúde (SUS) em mulheres de 50 a 69 anos. A detecção precoce do tumor e início do tratamento aumentam as chances de cura.
Primeiro um detalhe: o estudo do Lancet foi de 1995 a 2009, então por que raios o MS fala em exames realizados entre 2010 e 2013? Vamos olhar para o que acontece com o rastreamento no período do estudo, mais especificamente o número de mamografias realizadas, o número de internações por câncer de mama e a taxa de mortalidade da doença. Não achei dados até 1997, mas podemos olhar os dados entre 1998 e 2009 (fonte: DATASUS):
Observem que embora o número de mamografias triplique no período, e as internações quase dupliquem (sinalizando que ocorrem mais diagnósticos de câncer dando entrada em hospitais, provavelmente para fazer cirurgias, radioterapias, quimioterapias, etc.), a taxa de mortalidade fica inalterada (mais precisamente cai um pouco no período inicial, depois começa a subir até superar um pouco a mortalidade inicial).
Ou seja, fazer mais mamografias não necessariamente significa que morrem menos mulheres por câncer de mama. E analisar o sucesso do rastreamento por mamografia a partir da taxa de sobrevivência não faz sentido porque como vimos anteriormente, esta taxa pode estar mascarada pelo sobrediagnóstico.
Outra pista pode estar na taxa de sobrevivência a outros cânceres. Obviamente que existem cânceres mais mortais do que outros. A maioria das leucemias hoje em dia é curável, o que não acontece com a maioria dos cânceres de pulmão. Mas quando a taxa de sobrevivência aumenta entre os cânceres que rastreamos, mas não sobe (ou até cai) entre os cânceres que não rastreamos, talvez seja um outro sinal de que a taxa de sobrevivência dos primeiros pode estar "contaminada" pelos "doentes que nunca foram (e provavelmente nunca seriam) doentes". O estudo menciona que:
- A sobrevivência para os cânceres de estômago, reto e leucemias caiu;
- A sobrevivência para os cânceres de próstata e mama subiu;
- A sobrevivência para os cânceres de colo uterino se manteve estável.
Vamos olhar rapidamente para a próstata. Segundo o MS, "O segundo câncer mais letal entre os homens brasileiros é o de próstata. As taxas se mantém estáveis: 12,4 a cada 100 mil, em 2002, para 13,65, em 2012. Para o diagnóstico deste tipo de câncer, os testes PSA realizados aumentaram em 67% entre 2008 e 2013. Em relação às biópsias de próstatas, foram realizados 44.924 procedimentos em 2013, o que representa 20% a mais do que em 2012". Nas palavras do próprio governo, portanto, aumentamos bastante a oferta de exames de PSA e biópsias e isso não teve qualquer impacto na taxa de mortalidade. Mais um belo argumento a favor da existência do grande problema: sobrediagnóstico.
O grande problema na mortalidade por câncer no Brasil hoje não é a falta de rastreamento. É o diagnóstico tardio (por demora do médico em perceber a possibilidade de doença, por demora dos exames complementares que confirmam o diagnóstico como tomografias e biópsias) e a dificuldade no acesso ao tratamento (encaminhamentos para especialistas costumam demorar, cirurgias demoram a ser agendadas, e a fila de espera para quimio e radioterapia é assustadora). Insistir nos rastreios e ficar se gabando por aumento na sobrevida em 5 anos é na melhor das hipóteses pura ignorância.
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