- Boa tarde, dona Clara. Tudo bem com a senhora?
- Tudo bem, doutor.
- E aí, o que houve?
- Eu marquei pro senhor porque minha pressão tá alta, e eu continuo com aquelas dores que eu falei da outra vez.
- Certo. Deixa eu dar uma olhada no seu prontuário...certo, as dores nos braços?
- Isso, doutor. Na verdade tem doído o corpo todo.
- É mesmo? Eu passei antiinflamatórios pra senhora da outra vez porque pelo que eu examinei parecia ser uma dor muscular por excesso de esforço, lembra? A senhora falou que trabalha como doméstica...os remédios aliviaram alguma coisa?
- Na verdade não, doutor.
- Ok. Vamos conversar mais sobre isso. Mas a senhora falou que a pressão anda alta, não foi? A senhora já tinha tido pressão alta?
- Sim doutor, eu sou hipertensa. Nem falei pro senhor naquele dia. Mas eu usava até um remédio, não lembro o nome, que eu não tomo desde fevereiro, porque acabou e eu não tava mesmo vendo muita melhora com ele, aí nem fui atrás de pegar mais.
- Tudo bem. Deixa eu ver essa pressão como está...16 por 11. Tá alta mesmo, dona Clara.
- Não disse? Eu não ando muito bem...
- E como estão as coisas? Assim, no geral? Em casa, no trabalho...tem tido muito trabalho?
- Ah, doutor, tá tudo certo. O trabalho nem tem muito esforço, hoje em dia eu cuido mais dos meninos do que da casa, porque ela colocou uma pessoa lá pra lavar roupa e passar, pra não forçar meu braço.
- Eita. Sua patroa deve gostar muito de você então. Faz tempo que você está lá?
- Faz sim, tem uns 10 anos já. Ela gosta de mim, porque eu é quem cuido dos meninos dela. Se não fosse eu...
- Como assim?
- Tem dois meninos lá, doutor. Marcelo, que tem 14 anos, e Miguel, que tem 10. O mais novo é tranquilo, mas o mais velho...
- Dá muito aperreio?
- Dá sim. Ele é complicado. Só obedece a mim.
- Como assim? E os pais?
- Oxe doutor, os pais...o pai dele viaja muito, passa a semana inteira fora e só volta no fim de semana. O menino fica solto. A mãe é muito mole. Ela nem gosta quando o pai fala alto com os meninos. E ela...pro senhor ter uma idéia, quem bota os meninos de castigo sou eu.
- Mas o que esse menino faz tanto?
- Ele é virado, doutor. Quer tudo do jeito dele, na hora que quer. Dia desses mesmo, encheram a casa de chocolate por causa da páscoa. Aí o menino queria se entupir de chocolate o tempo todo. Só que quando eu estou lá ele respeita, sabe? Me pede. Aí eu disse que não podia. Ele disse que ia ligar pra mãe, e eu disse que ele podia ligar pro Papa que não ia comer chocolate. Ele ligou, a mãe disse que podia, mas quando ele disse que eu tinha proibido, ela disse: "então não pode".
- Ela confia muito na senhora, então...
- Tem que confiar. Porque ele só obedece a mim. Quando ela pediu pra eu cuidar dos meninos eu disse: "eu cuido, mas a minha ordem é a minha ordem". E ela topou. Tá vendo que eu ia aguentar aquele menino sem poder mandar nele?
- Pelo jeito ela não passa muito tempo com eles, né?
- Passa não, doutor. Ela trabalha muito, e sai muito também. Mas quando ela tá em casa também...os meninos ficam no computador o tempo todo.
- É mesmo?
- É. O senhor acredita que ele gastou 500 reais no cartão da avó comprando coisas no computador? Gastando dinheiro nesses negócios de jogo...e dia desses ele gastou foi no cartão da mãe, mais de mil reais.
- Oxe...e essa mãe não bota esse menino de castigo não?
- Colocar coloca...deixa ele sem computador e sem iPod. Mas quando chega na sexta ela libera. Porque ela quer sair, né? Aí tem que deixar ele ocupado.
- E ele joga muito então, né?
- Demais. Quando eu estou lá, não, porque comigo ele dorme na hora. Dia desses a mãe tinha saído e eu estava lá, aí disse: "vamos, Marcelo. Dez da noite, hora de dormir". Aí ele disse que a mãe, antes de sair, disse que ele podia ficar até as onze. E eu disse: " quando ela estiver aqui você se resolve com ela. Comigo aqui vai dormir às dez". Ele fica arretado, mas obedece. Agora sabe o que ele fez um dia desses?
- O que?
- Ele tava botando era o despertador pra acordar de madrugada e jogar. Aí ficava lá, caladinho, porque tava todo mundo dormindo e ninguém via. Até que eu desconfiei e perguntei ao mais novo.
- E a senhora desconfiou por que?
- Porque ele estava dando trabalho pra acordar de manhã, e eu via que ele estava com sono mesmo. Aí eu perguntei a Miguel e ele disse.
- A senhora tá ligada, né?
- Oxe. 10 anos lá, doutor, conheço tudo. Dia desses mesmo teve uma lá que a mãe não me contou na hora mas eu sabia que tinha algo errado, apertei, e ela acabou me contando.
- O que houve?
- Ele começou com um negócio de chamar os amigos pra dormir lá. E toda vez era na noite que eu ficava dormindo lá. Só que os amigos, o senhor imagina, tudo igual a ele, um monte de reizinho. Começaram a pular em sofá, a fazer a maior bagunça, e na confusão derrubaram o computador dele...computador feito esse aí do senhor não, um daqueles pequenos, que fecha assim.
- Notebook.
- Isso, notebook. Só que caiu no chão e tinha era quebrado, mas ele não falou nada. Eu tava achando estranho porque nos dias seguintes não via ele jogar. Até perguntei, e ele falou que não queria. Como assim não queria, o menino é viciado naquele negócio. Então eu fui atrás da mãe, e depois que os meninos dormiram ela acabou me contando que o computador tinha quebrado.
- E por que só quando os meninos dormiram?
- Pra não falar na frente dele, né. Parece que ela tem medo dele. Então, ela me contou que tinha quebrado. Só que eu não deixei barato. Na hora eu fiquei calada, mas depois...
- Como assim?
- No outro dia eu peguei ele, botei na frente da mãe e disse: "conte pra sua mãe como você quebrou o computador, antes que eu mesma conte". E ele contou que o amigo tinha derrubado o computador quando pulou no sofá. Ela ficou revoltada, e disse que não ia consertar.
- Eita, olha aí, dessa vez ela reagiu!
- Que nada. Ele acabou pegando o de Miguel, porque lá cada um tem um. E acabou quebrando o de Miguel. Aí quando o de Miguel quebrou eles colocaram os dois pra consertar, e acabaram usando as peças do de Miguel no dele, e compraram um novo pra Miguel.
- É...deve ser difícil pra senhora cuidar desses meninos.
- E agora tem uma menina também!
- Como assim?
- Seguinte: eles estavam separados. Aí voltaram há pouco, mas ele tinha tido uma menina com uma moça aí. E a cada 15 dias ele leva a menina lá pra casa.
- E qual a idade dela?
- Dois anos. Bonitinha ela.
- E a senhora cuida?
- Nada, o pai fica com ela. Ele pega ela de manhã e devolve à noite. A patroa é que não gosta. Assim, ela finge que gosta, fica tentando brincar com a menina. Mas a menina não gosta dela. Criança parece que sente as coisas, né?
- É mesmo. E a mãe dessa menina?
- Fica pra lá, na casa dela. Nunca nem vi. Morro de pena, porque a menina tem tanta roupinha linda lá em casa e não pode levar, porque o pai não deixa. Vai acabar perdendo tudo.
- Oxe...ela não pode levar as roupas?
- Pode nada. O pai não deixa. Dia desses eu fui perguntar e ele disse que a mãe da menina não queria que fosse nada de lá pra casa dela. Mas eu sei que é ele que não deixa.
- E a senhora no meio dessa confusão toda?
- Num é? Complicado, né, doutor?
- É sim. Eu tava pensando aqui...será que essa dor da senhora e essa pressão alta não tem relação com isso tudo?
- Doutor, deve ter, né? Mas eu gosto de lá. Dá muito aperreio, mas eu gosto de lá.
- Então vamos fazer o seguinte, a senhora podia vir aqui mais umas vezes, pra gente conversar mais e aproveitar pra gente ver se controla essa pressão. Vou começar o tratamento de novo com os remédios, e a gente vai se falando e resolvendo os próximos passos. Pode ser? Vou pedir uns exames também porque quem tem pressão alta de vez em quando tem que checar se os rins estão bem, se a glicose no sangue tá boa...
- Tá ótimo, doutor. Gostei do senhor. Vou voltar mesmo, viu?
(obviamente, nomes e outras informações que pudessem identificar as pessoas envolvidas nesta postagem foram trocados, porque Recife é um ovo de codorna e vai que a coisa circula muito, né?)
Um comentário:
E o moral da história, doutor. qual é?
Abvaço
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