quinta-feira, 11 de julho de 2013

Eu, eu mesmo e as mudanças.

Hoje eu estava pensando em como a gente muda de opinião com o tempo. Estabeleci um dialogo imaginário comigo mesmo, só que era "eu" hoje com "eu" cinco anos atrás, e fiquei surpreso por discordar de boa parte do que eu fazia enquanto médico. O mais interessante foi constatar que eu discordo do que eu fazia, mas nem tanto assim dos princípios que levavam àqueles atos. A interpretação dos princípios e consequentemente a escolha dos caminhos é que mudou. Confuso? Eu também, garanto.

Em 2008 eu tinha concluído a residência em Saúde da Familia no IMIP (ainda era multiprofissional, e tinha esse nome) há pouco mais de um ano, e já atuava como médico concursado da prefeitura. Já tinha cerca de um ano na mesma unidade. Na época eu achava que o bom médico de familia era aquele que tinha uma boa formação em saúde pública, e que conhecia muito bem o território onde atuava, incluindo análise de indicadores de saúde, e que tentava fazer alguma coisa pelo maior número de pessoas possível. Embora já naquela época não trabalhasse com agenda em função de programas (os famosos "dias do hipertenso", "saúde da criança" e outras sandices, na opinião do "eu" atual), minha agenda ainda era bastante fechada. Atendia pacientes marcados, muitas vezes com uma ou duas semanas de antecedência, e investia muito tempo em monitoramento de indicadores da área: percentual de hipertensos acompanhados, de gestantes com pré-natal em dia, número de visitas realizadas pelos Agentes Comunitários de Saúde. Adorava protocolos clínicos. Achava que se eu controlasse bem as ações da equipe a gente poderia fazer mais coisas com os poucos recursos disponíveis na unidade de saúde.

Neste intervalo eu passei quatro anos na gestão pública, com a responsabilidade de avaliar/revisar/reformular/conduzir um programa que melhorasse a qualidade dos serviços de APS no estado. E pela primeira vez eu tive a noção de como dá trabalho ficar fazendo essas contas. Aliás, que dava trabalho eu sabia, mas pude dimensionar melhor como isso toma tempo. E como tem gente trabalhando na gestão que poderia fazer isso, deixando o tempo das equipes da saúde para fazer o que a população mais precisa: assistência. Nessa época, lembro de ver uma charge que colocava um médico de família numa bifurcação de uma estrada, onde havia uma placa que apontava para a clínica de um lado, e para a epidemiológica do outro, e sugerir que o camarada deveria se equilibrar entre os caminhos. No diz em que vi isso, um insight: impossível. Somos clínicos, ponto. Devemos conhecer o campo da epidemiologia, mas não nos ocuparmos dele.

Enquanto pensava nessas coisas, conheci gente que pensava diferente. Adotei a tática de ler as coisas contrárias ao que eu pensava. Das duas uma, ou eu mudaria de opinião ou pelo menos aprenderia bons argumentos para mantê-la. E deu muito certo, eu acho.

Hoje eu olho para o médico de familia que eu era há cinco anos e fico muito feliz em ter mudado muito. Atualmente eu penso que eu preciso conhecer as pessoas, não "o território". E que só posso conhecê-las se eu dedicar tempo para isso. E que só poderei dedicar mais tempo pra isso se ficar menos tempo preenchendo planilhas e calculando indicadores, menos tempo dando palestras, atividades em grupo onde as mesmas coisas são repetidas, e mais tempo no consultório, ouvindo, falando, revendo, estudando, pensando. Aprendi também que protocolos servem pra tentar trazer certeza a cenários incertos, e que eu quase nunca preciso das certezas "clinicas" quando eu consigo ouvir e responder aos anseios das pessoas. Resolver as incertezas tem sido mais útil para os anseios do médico do que para os pacientes, pelo menos no âmbito da atenção primária, e essa parece ser a nossa grande diferença, o que nos aproxima das pessoas. E isso é velho, não surgiu agora com o governo dizendo que precisa formar médicos "humanizados" (termo que eu odeio, do fundo do coração).

Na manhã de hoje eu fiz visitas. Fui ver uma senhora que não andava bem por dores crônicas no quadril, e consegui ensiná-la a usar uma muleta e assim conseguir andar um pouco melhor. Estava chovendo muito, e enquanto eu corria pro carro veio uma outra senhora, de guarda-chuva, dizendo que soube que eu estava ali e tinha vindo pra me dar um abraço porque depois de ter passado por muitos médicos, tinha sido eu o que tinha feito alguma coisa por ela pois agora ela se sentia melhor. Fui para a segunda visita, que não foi impedida pelo fato da pessoa a ser visitada estar dormindo, pois deu pra conversar com as filhas dela, sentir um pouco o clima da casa e como elas lidavam com a depressão da mãe (deflagrada pela perda do marido, há dois anos). No caminho resolvi visitar mais uma pessoa, uma mulher cujo marido tinha sido assassinado há um mês. Ela não tinha procurado ajuda, mas fui lá conversar um pouco e foi visível como ela se sentiu cuidada por isso. Tão pouco. Essa semana eu recebi uma mãe que perdeu seu bebê de 4 meses para uma doença que ela nem sabe qual foi. Passei quase uma hora conversando com ela, parecia ser o certo a fazer, e ela me disse uma coisa que não sai da minha cabeça até agora: "doutor, a gente tá acostumado a escolher uma roupa pro nosso filho pra passear com ele. Imagine o que é escolher uma roupa pra enterrar ele?". Chorei quieto, acho que ela nem notou (até porque chorava também, e não precisava se preocupar em ser discreta). Enquanto isso, na recepção as pessoas reclamavam por causa da demora no atendimento. Outro dia um cidadão, completamente bêbado, estava na mesma recepção reclamando porque eu tinha encaminhado ele ao cirurgião para operar sua hérnia inguinal há 3 meses, e a consulta ainda não tinha sido marcada. Chamei ele no consultório e fiquei ouvindo enquanto ele desabafava sobre a impossibilidade de trabalhar, sobre a dor, sobre a incapacidade do governo de organizar um sistema decente, um sistema que responda a uma coisa tão simples. E ele concluiu dizendo: "ainda bem que tem eleição ano que vem". Outro dia uma senhora que eu visitei me ofereceu um bolo de dinheiro em agradecimento ao meu trabalho, e recusá-lo gerou um problema no meu relacionamento com ela, que ficou ofendidíssima. Esse é o meu cotidiano, queridos leitores.

Há cinco anos eu teria atendido as mesmas pessoas, mas medicando, pedindo exames, medindo, fazendo contas, e quando o problema fosse o sistema e não meu, fecharia a porta e mandaria ao psicólogo da rede ou à ouvidoria ou a qualquer lugar que não fosse a minha sala pra não "me atrapalhar". Gosto mais de mim hoje. Meu dia é dedicado a aliviar o sofrimento, não por ser bonzinho, legal ou "humano", mas porque é meu trabalho, fui formado pra isso, fui contratado pra isso, e recebo pra isso. Nenhum governo que proponha medidas populistas e demagogas vai apagar isso. Nenhum movimento corporativista que se aproveita da minha área para defender interesses excusos vai apagar isso. Cada vez mais me orgulho de me pautar pelas pessoas, não pelos gestores, não pela corporação. E quando esse idiota não for mais ministro, e mesmo enquanto os "colegas" parasitas continuarem chupando o sangue do SUS, eu vou continuar sendo médico de pessoas.

Foi bom conversar comigo mesmo na versão anterior. Exercita a tolerância com o outro, renova a crença nas boas intenções, traz a esperança de que tudo passa. Até, e principalmente, eu mesmo. Ainda bem.

6 comentários:

Denise disse...

Muito legal, Rodrigo. Sua percepção, sua capacidade de reconhecer e aceitar mudanças, dúvidas... Só assim a gente cresce e se torna uma pessoa melhor. Uma pessoa melhor será sempre um profissional melhor. E você é isso: alguém quem pode ser melhor e fazer melhor.

Livia Coelho disse...

que mais gente possa ter a oportunidade de encontrar um médico que goste mais das pessoas que das doenças. orgulho de tu. que venha a próxima versão! :P

Anônimo disse...

Uma pergunta posso publicar este texto no curso pós em saúde da família que estou fazendo pelo UnaSuS?
E como diria Heraclito: A única coisa que permanece é a mudança.

Nathan Souza disse...

Oi Rodrigo,
Excelente o relato desse necessário dialogo interno entre o que fomos, somos e queremos ser. Vi muito da medicina centrada na pessoal (tal como proposta por Sterwart e colaboradores) em sua atual e linda pratica medica. Meus parabéns! Eu que estou na pós-graduação, gestão federal, pesquisa e em breve na docência em MFC, senti muita inspiração. Por favor, receba meu muitíssimo obrigado. Nathan Souza

Letícia Araujo disse...

Oi Rodrigo,
Iniciei na residencia em Medicina de Família esse ano e agradeço por expor seu diálogo consigo. Procuro sempre manter um diálogo com meu eu ao final de cada dia, indagando o que poderia ter feito melhor e o que fiz que deu certo, e me preocupava e me afligia o fato de eu ser cobrada pela gerencia por indicadores e números que eu não tenho vocação nenhuma para realizar tal tipo de atendimento.
Sou o tipo de pessoa que gosta de conversar com os pacientes e manter um horário tem sido difícil. Obrigada pelo momento reflexivo, sua experiência ajuda na minha também.

Rodrigo Lima disse...

Pessoal, podem usar o texto à vontade. Fiquei bem feliz com a repercussão que está tendo, significa que tem mais gente pensando nas mesmas coisas, vivendo experiências parecidas...só peço que junto com divulgação passem o link do blog, pois isso permite que tenhamos mais pessoas interagindo neste espaço. Obrigado pela "audiência" de vocês!