Calor danado
sábado, 28 de maio de 2016
O limite do SUS não pode comprometer a universalidade
Ele abre o texto dizendo que:
"Políticas públicas destinadas exclusivamente aos mais pobres estão fadadas ao fracasso"
Concordo em gênero, número e grau. O texto segue dando demonstrações de que as políticas públicas de saúde mais bem sucedidas são as que atingiram cobertura universal: o programa nacional de imunizações, o tratamento da infecção pelo HIV, o programa de transplantes. Eu incluiria aí também o SAMU. Nesses programas, pobres e ricos conseguem tratamento igual (salvo exceções). Aí o Drauzio aponta os problemas de financiamento insuficiente associados à gestão ruim dos gastos e à corrupção, e chega à conclusão que quanto menos os ricos utilizarem o SUS, mais recursos sobrará para os pobres. O verbo usado foi esse, SOBRAR.
E é aí que mora o problema. Recurso pra saúde não tem que ser "o que sobra". Tem que ser o necessário E (notem o maiúsculo-negrito-sublinhado) adequado ao orçamento público. A Claudia Collucci diz, acertadamente, que "nem países mais ricos e menos populosos que o nosso ousaram prometer 'tudo para todos' em saúde". Verdade. Mas o que eles prometem?
Pessoas procuram unidades de pronto-atendimento para pegar uma receita de dipirona que permita pegar o medicamento sem custos na rede do SUS. Ou agendam consultas ambulatoriais para pedir exames "de rotina" que não acrescentam nada à sua saúde. Médicos influenciados pela indústria farmacêutica prescrevem medicamentos caros apenas por serem novidades, não por serem mais eficazes que outras drogas já consolidadas.
E é esse aspecto do mau gasto público que o Drauzio esquece de abordar em seu texto. Olhem a conclusão:
"se não há dinheiro para todos, que os estratos mais ricos da população cuidem da própria saúde e deixem o SUS para os que não têm alternativa."
Não, Drauzio. Você mesmo já tinha afirmado e demonstrado ali em cima que a solução é universalizar, não restringir. A grande questão é o que universalizar. Cansei de ver pacientes com hipertensão ou diabetes recém-diagnosticados utilizando medicamentos mais caros, oferecidos pelo SUS e que deveriam estar reservados para pessoas com maior dificuldade no controle de seus problemas. Ou de receber pacientes que trazem resultados de 20 exames laboratoriais solicitados sem qualquer embasamento científico.
A Claudia tá certa: não dá pra prometer tudo. Tem que limitar a promessa ao que funciona e tem relação custo-benefício satisfatória, aprovado em avaliações técnicas que contem com gestores e profissionais do SUS. Tem que entrar em acordo com o judiciário para que considerem essas decisões ao julgar causas contra o SUS. Se for preciso mudar o arcabouço legal do SUS pra isso, então mudemos. Mas o que a gente resolver prometer, tem que prometer pra TODO MUNDO. Porque como o próprio Drauzio falou, "políticas públicas destinadas exclusivamente aos mais pobres estão destinadas ao fracasso".
sexta-feira, 1 de janeiro de 2016
Conversa de ano-novo
Cerca de meia-hora após os fogos da meia-noite, minhas filhas maiores (7 e 5 anos de idade) tiveram um ataque de choro. Elas tinham se assustado um pouco com o barulho dos fogos, mas parecia um choro diferente. Fui pra um canto e coloquei ambas no colo.
- "Ô meninas, por que estão chorando? Hoje é um dia feliz! Vamos comemorar!"
Demorou um pouco tentando puxar conversa até que Júlia resolveu falar:
- "É que a gente não quer que vovó morra! A gente não quer ser adulto!"
Minha mãe morreu há 1 ano e meio. Estamos numa casa de praia, com muitos familiares, incluindo meu pai, irmãos, tios, primo, e meus sogros. Inevitável lembrar dela ao ver todo mundo junto, como ela gostava. Mas a gente nunca imagina como as crianças racionalizam isso...
- "A gente não quer que ninguém morra, pai. Vovó vai morrer?"
Estou muito feliz nesse momento por ter conseguido dar a seguinte resposta:
- Meninas. Todo mundo vai morrer um dia. Eu sei que é ruim, mas a vida é assim. Vocês sabem o que a gente deve fazer em relação a isso?
- O que?
- Qual o oposto de morrer?
- Como assim?
- Qual o oposto de grande?
- Pequeno.
- Qual o oposto de feio?
- Bonito.
- E qual o oposto de morrer?
- Viver.
- Então. A gente tem que viver. Aproveitar cada dia. Brincar, fazer coisas legais. Não perder tempo brigando, fazendo coisas erradas. Aproveitar cada tempo com as pessoas que a gente ama.
- (...)
- Vamos aproveitar a festa?
E eu ganhei dois sorrisinhos. Discretos, desconfiados. Mas estavam lá. Agora é continuar cuidados dessas plantinhas para que dêem belas flores e frutos gostosos mais à frente.
Então o que eu disse pras meninas eu desejo pra vocês. Que gastem mais tempo aproveitando a vida. Feliz 2016.
domingo, 29 de novembro de 2015
Novembro Azul e o jus sperniandi
quinta-feira, 1 de outubro de 2015
Todo ano tem: Outubro Rosa
- O câncer pode ser evitado?
- Descobrir o câncer precocemente diminui a mortalidade?
- Como está o tratamento do câncer de mama no Brasil?
Quer ajudar? Cobre os gestores públicos para que ofereçam não apenas caminhões pintados de rosa, mas hospitais resolutivos no diagnóstico e tratamento do câncer de mama. Vai por mim, esse lacinho rosa na camisa e no Facebook não estão salvando ninguém. Mas em tempos onde o foco é o comportamento politicamente correto em redes sociais, quem se importa?
quarta-feira, 30 de setembro de 2015
Imagina?
- Pai, tinha dois homens com arma ali.
- Foi, eu vi. São seguranças.
- E por que eles estão com arma?
- Pra nenhum ladrão chegar perto.
- Mas se um ladrão chegar perto, ele atira?
- Sim, Ju, atira. Mas vamos torcer pra não ter ladrão, não é?
- Se for ladrão, espero que não seja pai de alguém...
- (...)
- Imagina pai, a criança estar em casa esperando o pai, e o pai não chegar, porque era ladrão e o segurança atirou nele?
terça-feira, 25 de agosto de 2015
Analfabetismos
Quando eu tinha uns 18, 20 anos, havia um funcionário do prédio onde eu morava que era conhecido da minha família desde criança. Ele tinha um déficit auditivo importante (aparentemente resolveria com uso de aparelho auditivo, mas ele não queria usar alegando que "as pessoas falavam muito alto" - essa história talvez renda outro post um dia). Salvo engano era analfabeto também, um "analfabeto funcional".
Esse camarada gostava muito da minha família, e tinha uma relação interessante comigo: a cada eleição ele me perguntava em quem votar. Alegava que as demais pessoas mandavam ele voltar em ladrão, e eu saberia quem mereceria o voto dele. Não sei de onde ele tirou isso, porque embora eu já tivesse uma visão política de esquerda (graças às excelentes influências familiares e ao movimento estudantil), não me lembro de ter tido com ele qualquer conversa nesse sentido.
Pois bem: eu sempre indicava. Não adiantava tentar explicar porque fulano era melhor que beltrano, ele não queria saber. Só me pedia que anotasse em um papel os números dos candidatos para que ele levasse a "colinha" pra urna. E assim eu fiz eleição após eleição, até perdermos contato. Ele era não apenas analfabeto em relação à capacidade de leitura e escrita, mas um entre tantos "analfabetos políticos". Pessoas que têm dificuldade em entender o assunto, seja por falta de bagagem, seja por preguiça, seja por desprezar o assunto.
Eu lembrei dessa história hoje ao ler o termo "analfabeto científico". Pensei imediatamente na enorme quantidade de médicos que não busca atualização em literatura científica. Para estes médicos, basta alguém dizendo o que fazer: solicite este exame, prescreva aquele medicamento. Eu tenho colegas formados há 10 anos ou mais que ainda repetem as mesmas condutas da época em que se formaram sem questionar. Outros que se "atualizam" em eventos financiados pela indústria farmacêutica. E por aí vai.
O funcionário do prédio onde eu morava parecia se importar com o seu voto, mas de repente achava que entender isso mais a fundo não era pra ele. Será que os médicos "analfabetos políticos" são assim também? Sabem que é importante ter boas práticas, mas acham que "não é pra eles" entender as evidências científicas mais a fundo? Se for esse o caso, uma pena. Porque quem não gosta de política está sujeito a ser governado por quem gosta. E médico que não gosta de estudar de verdade está sujeito a quem?
quinta-feira, 21 de maio de 2015
Um dia de um médico de família
Pra mim a melhor maneira de celebrar é mostrar mais como é o nosso cotidiano, então eu finalmente terminei a tradução de um texto sensacional publicado no mês passado por uma colega britânica chamada Zoe Norris.
O original está AQUI. A tradução é livre, não chancelada pela autora e quaisquer erros se devem à imperícia do tradutor, e nada mais.
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