sábado, 28 de maio de 2016

O limite do SUS não pode comprometer a universalidade

A discussão sobre os caminhos para o SUS é essencial, e a participação de formadores de opinião como o Drauzio Varella mostra que talvez tenha chegado a hora de levá-la à sociedade em geral. Mas vejo o texto do Drauzio com preocupação, pois confunde muitos conceitos caros ao que já sabemos sobre sistemas nacionais de saúde. Claro que muita gente escreve sobre o assunto por aí, mas pelo peso que a opinião do Drauzio tem, achei importante abrir aqui uma discussão sobre as coisas que ele falou.

Ele abre o texto dizendo que:

"Políticas públicas destinadas exclusivamente aos mais pobres estão fadadas ao fracasso"

Concordo em gênero, número e grau. O texto segue dando demonstrações de que as políticas públicas de saúde mais bem sucedidas são as que atingiram cobertura universal: o programa nacional de imunizações, o tratamento da infecção pelo HIV, o programa de transplantes. Eu incluiria aí também o SAMU. Nesses programas, pobres e ricos conseguem tratamento igual (salvo exceções). Aí o Drauzio aponta os problemas de financiamento insuficiente associados à gestão ruim dos gastos e à corrupção, e chega à conclusão que quanto menos os ricos utilizarem o SUS, mais recursos sobrará para os pobres. O verbo usado foi esse, SOBRAR.

E é aí que mora o problema. Recurso pra saúde não tem que ser "o que sobra". Tem que ser o necessário E (notem o maiúsculo-negrito-sublinhado) adequado ao orçamento público. A Claudia Collucci diz, acertadamente, que "nem países mais ricos e menos populosos que o nosso ousaram prometer 'tudo para todos' em saúde". Verdade. Mas o que eles prometem?

Pessoas procuram unidades de pronto-atendimento para pegar uma receita de dipirona que permita pegar o medicamento sem custos na rede do SUS. Ou agendam consultas ambulatoriais para pedir exames "de rotina" que não acrescentam nada à sua saúde. Médicos influenciados pela indústria farmacêutica prescrevem medicamentos caros apenas por serem novidades, não por serem mais eficazes que outras drogas já consolidadas.

E é esse aspecto do mau gasto público que o Drauzio esquece de abordar em seu texto. Olhem a conclusão:

"se não há dinheiro para todos, que os estratos mais ricos da população cuidem da própria saúde e deixem o SUS para os que não têm alternativa."

Não, Drauzio. Você mesmo já tinha afirmado e demonstrado ali em cima que a solução é universalizar, não restringir. A grande questão é o que universalizar. Cansei de ver pacientes com hipertensão ou diabetes recém-diagnosticados utilizando medicamentos mais caros, oferecidos pelo SUS e que deveriam estar reservados para pessoas com maior dificuldade no controle de seus problemas. Ou de receber pacientes que trazem resultados de 20 exames laboratoriais solicitados sem qualquer embasamento científico.

A Claudia tá certa: não dá pra prometer tudo. Tem que limitar a promessa ao que funciona e tem relação custo-benefício satisfatória, aprovado em avaliações técnicas que contem com gestores e profissionais do SUS. Tem que entrar em acordo com o judiciário para que considerem essas decisões ao julgar causas contra o SUS. Se for preciso mudar o arcabouço legal do SUS pra isso, então mudemos. Mas o que a gente resolver prometer, tem que prometer pra TODO MUNDO. Porque como o próprio Drauzio falou, "políticas públicas destinadas exclusivamente aos mais pobres estão destinadas ao fracasso".

sexta-feira, 1 de janeiro de 2016

Conversa de ano-novo

Cerca de meia-hora após os fogos da meia-noite, minhas filhas maiores (7 e 5 anos de idade) tiveram um ataque de choro. Elas tinham se assustado um pouco com o barulho dos fogos, mas parecia um choro diferente. Fui pra um canto e coloquei ambas no colo.

- "Ô meninas, por que estão chorando? Hoje é um dia feliz! Vamos comemorar!"

Demorou um pouco tentando puxar conversa até que Júlia resolveu falar:

- "É que a gente não quer que vovó morra! A gente não quer ser adulto!"

Minha mãe morreu há 1 ano e meio. Estamos numa casa de praia, com muitos familiares, incluindo meu pai, irmãos, tios, primo, e meus sogros. Inevitável lembrar dela ao ver todo mundo junto, como ela gostava. Mas a gente nunca imagina como as crianças racionalizam isso...

- "A gente não quer que ninguém morra, pai. Vovó vai morrer?"

Estou muito feliz nesse momento por ter conseguido dar a seguinte resposta:

- Meninas. Todo mundo vai morrer um dia. Eu sei que é ruim, mas a vida é assim. Vocês sabem o que a gente deve fazer em relação a isso?
- O que?
- Qual o oposto de morrer?
- Como assim?
- Qual o oposto de grande?
- Pequeno.
- Qual o oposto de feio?
- Bonito.
- E qual o oposto de morrer?
- Viver.
- Então. A gente tem que viver. Aproveitar cada dia. Brincar, fazer coisas legais. Não perder tempo brigando, fazendo coisas erradas. Aproveitar cada tempo com as pessoas que a gente ama.
- (...)
- Vamos aproveitar a festa?

E eu ganhei dois sorrisinhos. Discretos, desconfiados. Mas estavam lá. Agora é continuar cuidados dessas plantinhas para que dêem belas flores e frutos gostosos mais à frente.

Então o que eu disse pras meninas eu desejo pra vocês. Que gastem mais tempo aproveitando a vida. Feliz 2016.

domingo, 29 de novembro de 2015

Novembro Azul e o jus sperniandi

Jus sperniandi é uma expressão que parece vir do latim, mas que na verdade não existe, embora seja utilizada amplamente no meio jurídico, de forma jocosa, referindo-se ao abuso do direito de recorrer(1). Faz alusão a uma criança esperneando inconformada diante de uma ordem de seus pais.

O mês de novembro de 2015 foi marcado por uma controvérsia que, embora já ocupasse a comunidade científica há alguns anos, chegou pela primeira vez com alguma força na mídia brasileira: o rastreamento do câncer de próstata deve ser indicado? Esta controvérsia no Brasil contou com dois lados: o lado do Ministério da Saúde e do Instituto Nacional do Câncer, apoiados pela Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade, tendo como opositores alguns setores da urologia brasileira, com o respaldo de sua entidade representativa, a Sociedade Brasileira de Urologia. Diversos meios de comunicação abriram suas portas para a discussão, como a Folha de São Paulo(2,3,4) e a Rede Globo de Televisão(5), expondo o outro lado da posição que parecia consolidada na sociedade brasileira: a de recomendar o rastreamento. Pela primeira vez o tema enfrentou uma discussão adequada, numa campanha embasada em referências científicas, feita com respeito e centrada no assunto, não na desqualificação dos interlocutores. Infelizmente, para o debate e para a sociedade, o outro lado desta discussão não seguiu os mesmos preceitos, e parece ter adotado a estratégia do jus sperniandi.

No texto intitulado "Novembro Azul polêmico: desserviço da desinformação", publicado no website da Associação Médica Brasileira(6), o urologista Aguinel José Bastian Júnior, apresentado como membro titular da Sociedade Brasileira de Urologia dedica-se a combater o debate público não utilizando evidências científicas relevantes, mas argumentos sem fundamento, ataques pessoais e institucionais e apelos emocionais. O referido texto é objeto de discussão aqui, razão pela qual recomendo a leitura prévia do mesmo. Comento em detalhes a seguir.

Inicialmente o texto começa criticando a mortalidade como referencial de desfecho para validar medidas de rastreamento, acusando a escolha de "bem servir a alguns propósitos econômicos no custeio da saúde pública". Tem início aqui a tentativa de vilanizar o lado da discussão que critica o rastreio, e colocar do mesmo lado as vítimas da doença e aqueles que segundo o texto detém a exclusividade de conhecer o sofrimento destas vítimas (não por acaso representados pelo autor do texto em questão). No mínimo falacioso, pois identifica exclusividade onde não há, e principalmente reduzir a discussão à questão econômica, argumento que jamais foi utilizado pelos que criticam o rastreamento.

Os indicadores de mortalidade geral são essenciais para avaliar uma medida de rastreamento, que consiste em realizar exames em indivíduos assintomáticos com o objetivo de identificar uma doença em estado inicial, melhorando as chances de tratamento da mesma. A utilização de indicadores específicos para a doença em questão, mesmo que sejam da mortalidade por esta doença, está sujeita a vieses muito bem documentados na literatura científica(7), que tendem a favorecer indiretamente as medidas de rastreamento sem que isso traga benefício real à população. Ignorar estes vieses apelando para argumentos emocionais como "só quem efetivamente trata de pacientes com câncer de próstata conhece as nuances do sofrimento causado pelas metástases dos tumores que não foram vistos a tempo" pode falar ao coração do leigo que lê o texto, mas carece de fundamento científico.

O texto segue trazendo como referência o "paradigma de Halsted, consagrado nome da cirurgia mundial" para afirmar que o rastreamento confere eficácia aos programas de rastreamento populacional dos cânceres. Com toda a referência devida a William Halsted, cirurgião norte-americano que atuou no final do século 19 e começo do século 20, este paradigma já não é considerado verdade absoluta há algumas décadas(8), frente às descobertas sobre o câncer que infelizmente Halsted não pôde presenciar, tendo falecido em 1922, quando o diagnóstico normalmente era feito em estágios bastantes avançados e a única forma de tratamento do câncer era um procedimento cirúrgico, ainda assim geralmente pouco efetivo. Um novo paradigma já foi proposto em seguida, conhecido como "paradigma de Fisher"(9), que entende o câncer como uma doença sistêmica. Um texto da premiada jornalista norte-americana Christie Aschwanden publicado há cerca de um ano(10) explica bem o equívoco neste raciocínio. Ela utiliza uma metáfora mencionada em um editorial publicado em 1998 na Cancer Control Journal(11) que compara o rastreamento do câncer de próstata (e tratamento dos cânceres identificados) a uma cerca numa fazenda que possui três tipos de animais: pássaros, tartarugas e coelhos. A "fuga" da fazenda seriam as temidas metástases, ou seja a disseminação do câncer pelo corpo. A cerca seria inútil para deter os cânceres agressivos demais (os "pássaros", que voarão sobre ela), assim como para conter os cânceres que evoluem muito lentamente (as "tartarugas", que jamais chegarão na cerca); mas poderá sim impedir a fuga dos cânceres "coelhos" (que nem são tão agressivos, nem tão inofensivos). O problema é que a nossa "cerca" (o rastreamento e o diagnóstico que surge a partir dele) confunde tartarugas com coelhos (o que chamamos de "sobrediagnóstico"), e trata os primeiros como os últimos (situação conhecida como "sobretratamento"), expondo pessoas desnecessariamente a malefícios.

Esta abordagem encontra fundamento na literatura científica. Os estudos mais importantes e recentes sobre o rastreamento do câncer de próstata encontram mais malefícios que benefícios associados à estratégia. A literatura é vasta, mas foi sistematicamente revisada e analisada por pesquisadores da Cochrane Collaboration em 2012(12), que concluíram que não havia redução da mortalidade geral associado ao rastreamento. Apenas um estudo relevante analisado pelos pesquisadores identificou uma redução na mortalidade específica por câncer de próstata, mas esta redução foi muito discreta: 1055 homens deveriam ser rastreados para o câncer de próstata ao longo de 11 anos para evitar uma morte por câncer de próstata, sem qualquer redução na mortalidade geral. Neste caminho, até metade dos homens rastreados receberam um diagnóstico falso-positivos (ou seja, foram alarmados desnecessariamente) e vários foram submetidos a procedimentos desnecessários incluindo biópsias e cirurgias, com complicações que variavam de ansiedade e pequenos sangramentos a quadros mais graves com infecções, disfunção erétil e incontinência urinária.

A revisão da Cochrane Collaboration preenche os mais rígidos critérios de confiabilidade, e serviu para fundamentar a decisão de vários países do mundo, incluindo o Brasil, os Estados Unidos, o Canadá e a grande maioria dos países europeus de não mais recomendar o rastreamento populacional, e entidades representativas da própria urologia como a American Urological Association adotaram posição semelhante(13). Mesmo assim o autor do texto prefere se apoiar em suas convicções para defender o rastreamento. Como tentativa de legitimar seu argumento, cita um artigo de opinião publicado há um mês no New England Journal of Medicine(14) (caracterizado pelo urologista como "recente e criteriosa análise sobre os benefícios dos programas de rastreamento"); e menciona especificamente um gráfico que mostra a incidência de câncer metastático no momento do diagnóstico nos Estados Unidos ao longo de quase 40 anos que sinaliza uma redução impressionante na incidência de câncer de próstata com metástases após o advento do PSA enquanto estratégia de rastreamento para a doença. Segundo o autor o gráfico "fala por si", mas talvez tivesse sido interessante analisar o artigo além do gráfico, pois além de já sabermos que esta detecção mais precoce não tem sido capaz de reduzir a mortalidade (já mencionamos a evidências sobre isso anteriormente), o autor afirma de forma clara: "infelizmente, muitos homens que são diagnosticados com doença localizada da próstata apresentam recorrência da doença após o tratamento. Este achado sugere que metástases microscópicas podem se desenvolver muito cedo no curso da doença e isso é mais consistente com o paradigma de Fisher do que com o de Halsted". A conclusão do artigo diz que uma parte dos cânceres já apresenta-se inicialmente de forma sistêmica, o que impacta diretamente na eficácia do rastreamento. Parece que a metáfora com os "cânceres-pássaros" faz mesmo sentido, e que basear a proposta do rastreamento no paradigma de Halsted não passa de um equívoco histórico.

Talvez induzido pelos próprios erros na interpretação da evidências o urologista segue seu texto, agora a denunciar que "opiniões desavisadas" desestimulam a busca pelo diagnóstico precoce "em pleno Novembro Azul" (o que para ele parece ser um ato de heresia). Insistindo na desqualificação do seu opositor e em ignorar as evidências, diz ainda que "médicos que não tratam câncer de próstata" contradizem as recomendações da Sociedade Brasileira de Urologia. Percebe-se aqui a tentativa de deslegitimar os médicos que "ousam" questionar a posição da SBU, mais uma vez partindo para a estratégia conhecida como "argumentum ad hominem". Ao que parece o urologista pode dominar muito bem o tema "próstata" mas tem pouca familiaridade com a Medicina Baseada em Evidências, sendo o próprio o "desavisado" nessa história.

A afirmação que fecha o parágrafo anterior encontra demonstração no seguimento do texto do urologista. Após continuar desqualificando seus opositores, desta vez o United States Preventive Services Task Force (USPSTF), um painel independente de especialistas em prevenção fundado e mantido pelo governo norte-americano e de relevância reconhecida mundialmente, classificados no texto como "um grupo de estatísticos e burocratas", o autor traz mais dados que tentam fundamentar sua posição. Menciona um modelo estatístico apresentado durante um congresso nos EUA e não publicado em detalhes, apenas em formato de resumo/poster(15) (o que não permite sua análise completa) que faz previsões aparentemente alarmistas: aumento na proporção de pessoas diagnosticadas com doença avançada após a recomendação do USPSTF contrária ao rastreamento. O problema é que esta conclusão é nada mais do que óbvia: ao suspender o rastreamento e o seu sobrediagnóstico, os casos mais graves irão aumentar proporcionalmente, porque o número absoluto de casos menos graves (e mais sujeitos ao sobrediagnóstico e sobretratamento) diminuirá. A pergunta que deveria ser respondida mas não o é: isso provocará alguma alteração na tendência de mortalidade geral, ou mesmo pela doença? O pesquisador que apresentou os dados está ciente da limitação deles, e conclui seu resumo dizendo "os dados apresentados devem ser interpretados com cautela". Cautela que parece ter faltado ao urologista.

Infelizmente muitos analisam os dados por conveniência, e chegam a afirmar que "as planilhas de dados são frias e nelas não há pessoas, somente números" quando os dados contradizem suas convicções, como parece fazer o urologista. Se um oncologista deixasse de usar um quimioterápico por considerar as evidências sobre sua efetividade "frias" e centrasse sua análise nos efeitos colaterais, poderia até aliviar náuseas e vômitos, mas jamais trataria cânceres. É a análise dos dados disponíveis que nos permite tomar decisões racionais, muitas vezes de aparência inicial desagradável. A análise seletiva das evidências disponíveis é um mal da medicina moderna, que acontece com frequência e normalmente está relacionada a questões como vieses de observação e conflitos de interesses.

Insistir na argumentação emotiva, dizendo que as pessoas "gritam de dor quando o câncer de próstata lhes chega aos ossos" ou que "dois ou três dias de convívio direto com um paciente metastático pode trazer mudanças de entendimento" é exatamente o oposto do que recomenda o método científico. Não passa de "jus sperniandi". Enquanto o debate com a sociedade não for feito às claras, declarando conflitos de interesse, apresentando e discutindo as evidências sejam elas a favor ou contra sua posição, sem desqualificação dos opositores e sem apelações emocionais, jamais o objetivo de estimular os homens a cuidar melhor da própria saúde será atingido, pois um dos princípios da bioética é fortalecer a autonomia dos sujeitos que serão alvo das intervenções médicas. E não há autonomia sem informação adequada.


Rodrigo Lima é Médico de Família e Comunidade


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Referências:



quinta-feira, 1 de outubro de 2015

Todo ano tem: Outubro Rosa

O Outubro Rosa é uma campanha que tem origem nos anos 90, nos Estados Unidos. A proposta é promover atividades com o objetivo de concientizar a população sobre a importância do diagnóstico, tratamento e cura do câncer de mama. Sendo a doença um problema de saúde importante em todo o mundo, levando a várias mortes e mutilações, e considerando que diagnosticar e tratar a doença precocemente poderia evitar estes desfechos, faz todo o sentido promover iniciativas deste tipo, certo?
Claro que despertar as pessoas para um problema pode ser importante, mas esse tipo de iniciativa não pode estar baseado em desinformação. O objetivo deste texto é apresentar alguns fatos relacionados ao câncer de mama.
  1. O câncer pode ser evitado?
    Não existe nada que possa ser feito que garanta que uma pessoa não terá câncer de mama. Existem situações que estão associadas a uma maior probabilidade de ter a doença, os chamados fatores de risco. No entanto, os fatores de risco não necessariamente são causas da doença, e a ausência destes fatores não garante que uma pessoa não terá câncer de mama. Promover um estilo de vida saudável, evitando a obesidade, o abuso de bebida alcoólica, o tabagismo, etc. são recomendações que valem para tentar evitar qualquer doença, mas quase todo mundo conhece alguém que se cuidava bastante e mesmo assim teve câncer, não é?
  1. Descobrir o câncer precocemente diminui a mortalidade?
    Individualmente, talvez sim. Em termos populacionais, provavelmente não. Mas como assim?
    Tomemos o exemplo de uma mulher com 54 anos que fez uma mamografia sem ter qualquer queixa e descobriu um nódulo que posteriormente foi diagnosticado como câncer. É provável que esta descoberta permita iniciar o tratamento precocemente e neste caso, esta mulher claramente se beneficiaria do exame. Mas em termos populacionais, quantas mulheres devem fazer o exame para que salvemos uma pessoa de morrer por câncer de mama?
    Um estudo recente sugere que precisamos examinar cerca de 2000 mulheres para que uma delas seja salva de morrer pela doença. Mesmo sendo muita gente pra examinar (o que torna o programa de rastreamento bastante oneroso), você pode pensar: “salvar esta vida não tem preço”.
    Acontece que tem. Para cada vida salva das garras do câncer de mama, teremos cerca de 200 mulheres com mamografias alteradas, o que gera ansiedade, preocupação, enfim, um transtorno na vida de cada uma destas mulheres. E para algumas delas a coisa vai ser pior: cerca de 10 destas mulheres falsamente diagnosticadas farão biópsias, cirurgias (retirando parcialmente ou totalmente uma ou ambas as mamas) e até radioterapia ou quimioterapia. Será que nove mulheres mutiladas desnecessariamente que descobrissem isso ficariam aliviadas pensando “foi ruim, mas pelo menos uma vida foi salva”? E se descobrissem que esta pessoa foi salva do câncer, mas acabou morrendo de outra coisa (visto que o estudo não aponta diminuição na mortalidade global)?
  1. Como está o tratamento do câncer de mama no Brasil?
    Está mal. Muitas mulheres que recebem o diagnóstico têm dificuldades para obter o tratamento oportuno (ou seja, cedo o suficiente para serem curadas). Isso acontece nos serviços públicos (devido à escassez de serviços para a quantidade de pacientes) e no privado (especialmente porque muitas operadoras de planos negam procedimentos e promovem uma via crucis para os pacientes até obterem autorização para o tratamento). A preocupação é tão grande que já existe uma lei federal garantindo o direito de que a pessoa com câncer receba tratamento em até 60 dias após o diagnóstico. Mas quem cumpre a lei? Poucas coisas me parecem tão cruéis quanto promover o diagnóstico precoce de uma doença para qual o tratamento não está garantido.

Agora eu te pergunto: o Outubro Rosa discute os problemas relacionados à falta de acesso ao tratamento? E o que ele traz, afinal?

O problema é que o Outubro Rosa virou o mês da mamografia. Governos mobilizam caminhões com mamógrafos para examinar as mulheres em caráter de mutirão. Celebridades (que caso adoeçam, terão amplo acesso ao tratamento) penduram lacinhos cor-de-rosa em suas roupas e compartilham imagens em suas contas no Facebook, Twitter, Instagram sem fazer qualquer reflexão sobre que tipo de assistência a população brasileira recebe, e qual deveria ser o foco se realmente quiséssemos reduzir a mortalidade por câncer de mama no Brasil (que aliás, mesmo com os sucessivos “Outubros Rosas” vem aumentando, segundo relatório do próprio Ministério da Saúde).

Quer ajudar? Cobre os gestores públicos para que ofereçam não apenas caminhões pintados de rosa, mas hospitais resolutivos no diagnóstico e tratamento do câncer de mama. Vai por mim, esse lacinho rosa na camisa e no Facebook não estão salvando ninguém. Mas em tempos onde o foco é o comportamento politicamente correto em redes sociais, quem se importa?

quarta-feira, 30 de setembro de 2015

Imagina?

Cena: estou andando na rua com Júlia, 06 anos (quase 07). Passamos em frente a uma casa lotérica no momento em que a empresa de transporte de valores está recolhendo dinheiro. Por isso, há dois vigilantes com suas armas na mão, parados em frente a um carro-forte. Seguimos caminhando e entramos em nosso carro, que estava estacionado 50 metros à frente.

- Pai, tinha dois homens com arma ali.
- Foi, eu vi. São seguranças.
- E por que eles estão com arma?
- Pra nenhum ladrão chegar perto.
- Mas se um ladrão chegar perto, ele atira?
- Sim, Ju, atira. Mas vamos torcer pra não ter ladrão, não é?
- Se for ladrão, espero que não seja pai de alguém...
- (...)
- Imagina pai, a criança estar em casa esperando o pai, e o pai não chegar, porque era ladrão e o segurança atirou nele?

terça-feira, 25 de agosto de 2015

Analfabetismos

Quando eu tinha uns 18, 20 anos, havia um funcionário do prédio onde eu morava que era conhecido da minha família desde criança. Ele tinha um déficit auditivo importante (aparentemente resolveria com uso de aparelho auditivo, mas ele não queria usar alegando que "as pessoas falavam muito alto" - essa história talvez renda outro post um dia). Salvo engano era analfabeto também, um "analfabeto funcional".
Esse camarada gostava muito da minha família, e tinha uma relação interessante comigo: a cada eleição ele me perguntava em quem votar. Alegava que as demais pessoas mandavam ele voltar em ladrão, e eu saberia quem mereceria o voto dele. Não sei de onde ele tirou isso, porque embora eu já tivesse uma visão política de esquerda (graças às excelentes influências familiares e ao movimento estudantil), não me lembro de ter tido com ele qualquer conversa nesse sentido.
Pois bem: eu sempre indicava. Não adiantava tentar explicar porque fulano era melhor que beltrano, ele não queria saber. Só me pedia que anotasse em um papel os números dos candidatos para que ele levasse a "colinha" pra urna. E assim eu fiz eleição após eleição, até perdermos contato. Ele era não apenas analfabeto em relação à capacidade de leitura e escrita, mas um entre tantos "analfabetos políticos". Pessoas que têm dificuldade em entender o assunto, seja por falta de bagagem, seja por preguiça, seja por desprezar o assunto.
Eu lembrei dessa história hoje ao ler o termo "analfabeto científico". Pensei imediatamente na enorme quantidade de médicos que não busca atualização em literatura científica. Para estes médicos, basta alguém dizendo o que fazer: solicite este exame, prescreva aquele medicamento. Eu tenho colegas formados há 10 anos ou mais que ainda repetem as mesmas condutas da época em que se formaram sem questionar. Outros que se "atualizam" em eventos financiados pela indústria farmacêutica. E por aí vai.
O funcionário do prédio onde eu morava parecia se importar com o seu voto, mas de repente achava que entender isso mais a fundo não era pra ele. Será que os médicos "analfabetos políticos" são assim também? Sabem que é importante ter boas práticas, mas acham que "não é pra eles" entender as evidências científicas mais a fundo? Se for esse o caso, uma pena. Porque quem não gosta de política está sujeito a ser governado por quem gosta. E médico que não gosta de estudar de verdade está sujeito a quem?

quinta-feira, 21 de maio de 2015

Um dia de um médico de família

No dia 19 tivemos a comemoração do dia mundial do médico de família e comunidade (MFC).

Pra mim a melhor maneira de celebrar é mostrar mais como é o nosso cotidiano, então eu finalmente terminei a tradução de um texto sensacional publicado no mês passado por uma colega britânica chamada Zoe Norris.

O original está AQUI. A tradução é livre, não chancelada pela autora e quaisquer erros se devem à imperícia do tradutor, e nada mais.

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“Eu? Sou apenas uma MFC...”

Eu fui a uma reunião da turma da escolar há alguns anos. Quando a conversa inevitavelmente seguiu sobre trabalho, e o que cada um estava fazendo hoje em dia, o meu foi sem dúvidas o emprego menos excitante. “Você é uma médica? Qual a especialidade?” Após o décimo comentário eu já queria mentir e dizer que era uma cirurgiã fetal, que operava pequenos bebês antes do nascimento, na linha de frente da tecnologia e do glamour medico, ou uma pesquisadora inovadora, próxima de descobrir a cura do câncer. Talvez uma neurocirurgiã, ou uma médica intensivista?
Eu me flagrei dizendo “sou apenas uma MFC”, e me encolhi em um canto. Não existem MFC suficientes. Jovens médicos não pretendem fazer residência em MFC. Com o estágio atual do NHS[*], há muita mídia negativa sobre o futuro da MFC, e médicos jovens a consideram uma especialidade insegura. Eles não sabem o que acontecerá nos próximos cinco ou dez anos. Sabem apenas que a imprensa nos odeia, os políticos nos acenam e depois nos ignoram, e isso os tem afastado da especialidade.
Ser um MFC não tem a ver com glamour. Não usamos equipamento de alta tecnologia. Não se trata de pesquisas inovadoras, ou de gritar “me dê um pouco de paracetamol, rápido!”. Existe muito pouco drama. Tem a ver com o desafio de lidar com tudo em uma pequena porção de tempo. Com ter a habilidade de se conectar instantaneamente com um paciente que você nunca viu antes. É lidar com pessoas normais vivendo vidas normais, e com os problemas que as afligem. Se você acha que está acima de tratar hemorroidas, indigestão, candidíase, eczema, então não é trabalho para você. Se você acha que não importa o quanto não-glamurosos estes problemas e seus tratamentos sejam, as pessoas podem sofrer por causa deles, então talvez seja. Eu sou uma MFC e eu posso cuidar destes problemas. Eu posso cuidar das pessoas. E embora não seja sexy ou chame a atenção das pessoas, faz a diferença na vida dos meus pacientes. Então eis um exemplo do tipo de paciente que eu costumo atender; aquele para o qual eu faço a diferença. Normalmente com pequenos atos, mas atos que são importantes para eles, e que me ajudam a lembrar porque eu escolhi este trabalho.
A mulher de 70 anos que eu tratei por uma infecção urinária – uma coisa tão simples de resolver. Na semana seguinte ela me trouxe um pedaço de bolo, que ela guardou do aniversário de uma amiga, porque ela se sentiu bem o suficiente para ir e me deu mais créditos por isso do que eu merecia.
A mãe que chorou de alívio quando eu a disse que ela não estava fazendo nada de errado com seu novo bebê. Que bebês não dormem a noite inteira, que ela não o faria mal abraçando-o longamente, e que ela está sendo brilhante com seu bebê de oito semanas.
O veterano de guerra que veio semana passada com seu filho, e achou que eu fui acolhedora o suficiente para retornar essa semana, admitindo que tem tido pesadelos e lembranças constantes do seu serviço, mas que nunca tinha dito isso a ninguém.
A senhora de meia-idade com sintomas da menopausa. Suas amigas falaram sobre as ondas de calor, mas ninguém mais reclamou de dor durante a relação sexual. Ela está preocupada, achando que não é normal. Conversamos sobre as possibilidades de tratamento disponíveis para ajudá-la.
O garoto de 17 anos envergonhado por ter acne. Eu o disse que poderia tratar o problema e que ele não precisaria mais lidar com isso; eu sei que isso fará uma grande diferença.
O homem convencido de que tinha câncer – quando eu o disse que era apenas um nódulo de gordura, ele pareceu prestes a chorar.
A criança de quatro anos que ouviu “comporte-se, ou o médico te dará uma injeção”. Gasto 15 minutos convencendo-a de que não farei isso. Ela correu e me deu um abraço no final de sua consulta.
A visita feita pela enfermeira à senhora que se queixava de piscar os olhos. “Eu ficava irritada com todos aqueles velhos olhando para mim”, ela me disse resmungando. Ela tem 98 anos.
O casal de 14 anos de idade que veio pedir ajuda para evitar uma gravidez. Conversamos sobre todas as opções; os riscos e benefícios. Ambos entenderam a decisão que haviam tomado, e eu os encorajei a voltar a qualquer momento se tivessem outras dúvidas.
A senhora idosa que veio com um simples quadro de manchas na pele. Quando eu perguntei se havia alguém que pudesse ajudá-la a aplicar um creme nas suas costas, ela chorou. Começou a falar sobre o seu marido. Ele havia morrido dois anos antes, e ela sente que já deveria “ter passado por cima disso”. Ela se sente estranha por ainda falar nele para familiares e amigos, pois todos eles já superaram a perda e ela não foi capaz disso. Eu disse que ela nunca superará isso de verdade. Não tenho mais nada a oferecer além de escutá-la.
O homem que entrou mancando após pisar em um vidro quebrado na noite anterior. Ele tem medo de hospitais e por isso não procurou atendimento de urgência, mesmo sabendo que deveria ter ido. Enquanto eu removo gentilmente o vidro ele se encolhe o tempo todo e agradece por não obrigá-lo a ir ao hospital. Minha tentativa de curativo é risível, mas ele sai bastante satisfeito.
O abscesso que se rompe enquanto eu o examino – alívio instantâneo para a paciente. Estranhamente satisfatório pra mim também.
O parente do paciente que após uma visita domiciliar me deu um livro de poesias, porque imaginou que eu apreciaria os sentimentos contidos nele.
O cartão de agradecimentos de um paciente viciado em tranquilizantes. Quando nos conhecemos, eu me recusei a prescrever mais medicamentos e o induzi a aceitar uma redução gradual. Achei que ele nunca mais voltaria. Ele nunca me disse obrigado, mas resolveu escrever e me dizer como ele se sentia humano de novo agora.
A professora dedicada, lutando contra uma depressão enorme e que se recusa a tirar uma licença por medo de deixar seus alunos na mão. É uma das poucas ocasiões em que eu assumo a postura “eu sou a sua médica e estou dizendo que você precisa de uma licença”. É paternalista e eu odeio fazê-lo, mas às vezes é necessário. Um mês depois ela está bem melhor e de volta ao trabalho, mais entusiasmada do que nunca.
O homem com pressão alta, que aceitou os quatro novos medicamentos que eu precisei prescrever para tentar controlar seu problema. Cada uma delas trouxe efeitos colaterais e após dois meses estávamos de volta ao ponto de partida. Enquanto me sentia culpada, ele dizia “não se preocupe, doutora, você tentou fazer o melhor. O que mais podemos fazer?”. Deu vontade de abraçá-lo.
A mulher de 19 anos de idade com constipação, assustada por precisar de ajuda médica. Eu a disse que é meu problema favorito para cuidar, porque é muito fácil de resolver. Ela aparenta estar aliviada enquanto eu apresento as opções.
O paciente morador de rua que eu tenho tentado exaustivamente ajudar, mas que é constantemente rejeitado porque nunca consegue agendar consultas. O cartão que ele me trouxe significa mais do que quase tudo que eu já recebi de um paciente. Eu sei o quanto custou para ele pensar nisso, comprar um cartão, achar uma caneta, escrever o nome dele e o meu e trazer para mim.
Todos os pacientes em meu consultório que está sempre 45 minutos atrasado, que não reclamam e dizem que está tudo bem, eles entendem que o dia está corrido. Não existe nada mais estressante para mim, mas com alguns pacientes eu não posso ter pressa. Eu não vou interromper pais em luto após perderem seu bebê para manter minha agenda. Eu não posso fazer a ambulância vir mais rápido para o homem com dores no peito. Eu não tenho controle sobre quanto tempo o hospital leva para atender o telefone e me colocar em contato com o médico que eu preciso consultar. Eu não me nego a ver um paciente com o qual a minha enfermeira está preocupada. Eu faço o melhor que posso.
Estas são as pequenas coisas que fazer o meu dia-a-dia. Estão além dos políticos, das manchetes de jornal, da negatividade. Breves amostras de 10 minutos das vidas das pessoas para as quais eu tento fazer alguma diferença. Na próxima vez em que eles ouvirem como os médicos de família são ruins, eu espero que eles se lembrem da nossa consulta de hoje, e pensem em mim de forma mais gentil. Talvez seja sim um trabalho glamuroso, no fim das contas. Quando você soma todos os atendimentos, eu posso ter feito a diferença para quase 40 pessoas hoje. Não são muitos os que podem dizer o mesmo.




[*] NHS = National Health System, o Sistema Nacional de Saúde britânico.