Entre várias notícias na área de saúde da última semana, uma em particular me chamou a atenção. Um cirurgião daqui de Recife foi indiciado por homicídio culposo, acusado de negligência. Sua paciente apresentou um tromboembolismo pulmonar após uma cirurgia de redução do estômago e morreu. A conclusão do inquérito foi que os sintomas do quadro foram erroneamente interpretados como manifestações de ansiedade por parte da paciente. (mais informações AQUI)
A mídia vai discutir se ele errou mesmo ou não. Para acusá-lo, podem apontar que a paciente engordou mais de 10 kg no período pós-operatório, ou que a paciente não preenchia totalmente os critérios de indicação da cirurgia (um médico fez estas colocações AQUI) ou podem questionar a resistência do hospital em liberar o prontuário médico durante as investigações (relatada no link do parágrafo anterior). Mas tem outra discussão aqui: o médico pode errar?
Uma pílula de anticoncepcional combinada (as mais usadas) funcionam em 99,9% das pessoas em teoria, e na prática sua segurança chega a pelo menos 97%. Ou seja, ela pode errar, e ninguém processa laboratórios por falhas (a não ser quando eles vendem pílulas de farinha por engano, mas isso é exceção).
A mamografia como exame de rastreamento para o câncer de mama aponta falsos-positivos (ou seja, exames alterados sem existir doença) em 50% dos casos. Isso mesmo, metade. E alguém conhece algum processo contra o fabricante do aparelho ou mesmo contra o responsável pelo laudo do exame por um falso-positivo?
A questão é a seguinte: não existem procedimentos absolutamente seguros na medicina. Tudo o que fazemos oferece riscos às pessoas. Ao que parece, as pessoas aceitam correr determinados riscos se a compensação for boa, como um tratamento empírico para uma cistite (sem a realização de uma cultura de urina com antibiograma), ou o uso de um medicamento antihipertensivo pelo resto da vida para prevenir um infarto ou AVC. Há pessoas que aceitam riscos maiores, como usar um medicamento para baixar o colesterol ou tomar uma vacina contra o HPV. A pergunta que fica é: as pessoas têm noção dos riscos envolvidos em cada procedimento? Ao que parece, não.
O aumento voluntário do peso para se enquadrar no índice de massa corporal que permite a cirurgia AUMENTA a probabilidade de surgimento de complicações. Será que a paciente estava esclarecida sobre isso?
Complicações como o tromboembolismo pulmonar podem acontecer em qualquer pessoa que se submeta a um procedimento desses. Segundo o médico em seu depoimento à polícia, a paciente estava ciente disso. O que significa estar ciente? Saber que pode acontecer? Entender as probabilidades do evento? Aceitar voluntariamente o risco após compreendê-lo?
Em resumo, é preciso rediscutir as responsabilidades dos médicos e das pessoas que os procuram em relação aos malefícios induzidos por condutas médicas. Se complicações forem sempre tratadas como erros, significa que médicos não podem ter complicações ou serão processados e até condenados por isso, e a sociedade vai ter que se preparar para o american way of health care, com cuidados médicos caríssimos para compensar o pagamento de seguros por médicos e as indenizações por complicações de seus atos consequentes de uma sociedade altamente "judicializada". Se por outro lado, a responsabilidade for simplesmente jogada na mão das pessoas (por exemplo, assinando um "termo de consentimento" qualquer), os médicos poderão sim se tornar mais negligentes, pois a responsabilidade deles diminui. Precisamos achar um meio termo, onde respeitemos os princípios éticos da profissão: propor medidas que façam o máximo de bem e o mínimo de mal às pessoas, e a partir da proposição fornecer o máximo de informações para que a pessoa tenha autonomia de verdade para escolher quais os riscos que está disposta a correr. E isso só vai acontecer com muito estudo e preparo por parte dos médicos, e de cuidados prestados ao longo do tempo, permitindo mais vínculo entre o médico e a pessoa e consequentemente uma maior compreensão mútua, fruto acima de tudo de muita conversa.