Olá, colega. Seja bem-vindo.
Soube que vocês andam preocupados com a recepção que terão
por parte de nós, médicos brasileiros.
Imagino
que vocês saibam que o Brasil é um país que sempre recebe bem os que buscam
contribuir com nossa sociedade. Os japoneses, italianos, alemães, libaneses,
entre outras nacionalidades que compõem nossa sociedade podem testemunhar a
nosso favor. Não temos conflitos internos que envolvam grupos étnicos, não nos
envolvemos em conflitos externos e jamais fomos xenófobos. Pelo contrário.
Então fiquem tranquilos, o povo brasileiro os receberá muito bem.
Talvez
minha fala não seja muito convincente quando comparada com o que as entidades
médicas brasileiras têm dito sobre vocês. Saibam que a maioria dos brasileiros,
e arrisco dizer, a maioria dos médicos discordam disso tudo. Não queremos
conflitos com vocês. Sabemos que vêm em paz, com o objetivo de trabalhar, e
tenho certeza que estarão seguros e tranquilos, no que depender das pessoas que
estarão com vocês.
Mas
acho que vocês precisam entender o que está acontecendo no Brasil neste
momento. Até para poderem contribuir de verdade com as mudanças sociais que
nosso país precisa.
A
Atenção Primária, (que aqui no Brasil é mais conhecida por Atenção Básica)
nunca foi prioridade de governante algum neste país. Por mais que tenhamos
observado uma expansão importante da rede de serviços de Atenção Primária nos
últimos 20 anos, o Sistema Único de Saúde (SUS) ainda não consegue cobrir nem
metade da população brasileira com estes serviços. Isso acontece porque ainda
não conseguimos vencer o debate sobre qual a melhor forma de organizar o SUS.
Neste debate, entra a discussão sobre a necessidade de mais médicos, e aqui
vale apontar alguns de nossos problemas:
1)
Sub-financiamento: o Brasil investe, per
capita, bem menos que a grande maioria dos países que assumiram o desafio
de ter um sistema de saúde de acesso universal). Além de termos pouco dinheiro,
pouco dele vai para a Atenção Primária (menos de 10% dos investimentos estatais
em saúde);
2)
Contratação descentralizada: o Brasil tem 5.560 municípios, e cada um deles
precisa desenvolver sua estratégia para atrair bons profissionais, o que gera
uma atmosfera que ultrapassa a competição saudável e atinge padrões predatórios,
onde quase sempre quem perde é a população;
3)
Falta de profissionais médicos, em termos quantitativos e qualitativos: embora
estudos mostrem que em duas ou três décadas atingiremos um bom número
proporcional de médicos, até lá lidamos com a falta de profissionais mesmo nos
grandes centros urbanos. Além disso, não há uma política de estado que
direcione a nossa formação para as áreas que mais precisamos, o que piora a
distorção;
4)
Estrutura precária de trabalho: por não ser prioridade, a Atenção Primária
nunca recebe os investimentos necessários para que possa oferecer condições
adequadas de trabalho. Lidamos o tempo todo com falta de medicamentos (na
unidade de saúde onde trabalho falta Enalapril e Ibuprofeno há quase dois
meses, só para citar dois exemplos), de exames (um relato: com frequência o
laboratório “esquece” de dosar a hemoglobina glicada das pessoas com diabetes
que fazem exames, e só manda os outros resultados) e de consultas com outros
especialistas (uma consulta com um cirurgião-geral para resolver uma hérnia
inguinal demora cerca de 4 meses, por exemplo).
5)
Não existem estratégias de fixação de profissionais nos centros mais afastados:
a única iniciativa do estado brasileiro nos últimos 20 anos foi exatamente o
programa que trouxe vocês, e sabemos bem que não é suficiente para fixá-los
aqui.
A
maior parte dos brasileiros que critica a vinda de vocês não é contrária
exatamente a vocês, e sim a vinda de vocês sem que sejam dadas as respostas a
estes problemas que menciono acima. Vocês são a resposta que pode se aplicar a
curto prazo, mas nada além disso. Nem nós, nem vocês conseguirão oferecer a
medicina que a população brasileira merece e precisa sem estas respostas.
Louvamos a sua disponibilidade em tentar, e esperamos profundamente que
consigam alguma coisa. Caso consigam desenvolver uma medicina de qualidade
neste cenário ficaremos felizes em aprender a fórmula mágica.
Uma
outra crítica que vocês poderão ouvir é em relação ao fato de não terem seus
diplomas revalidados. Saibam que o argumento do governo brasileiro é que não
vão revalidar seus diplomas exatamente para poder mantê-los “presos” aos
municípios que vocês escolheram para trabalhar. Não me parece a estratégia que
mais valoriza a autonomia das pessoas, mas se vocês concordam trabalhar nestas
condições não cabe a mim julgá-los. Eu não trabalharia, mas enfim.
E se
você é cubano e já tem alguma experiência em outros países (como o governo
brasileiro tem dito que vocês tem), imagino que já esteja acostumado com o
desconhecimento que o mundo tem da realidade cubana. Temos ainda uma
polarização ideológica no Brasil que envolve segmentos que louvam a "Revolução
Cubana" e outros que demonizam a "Ditadura Cubana". Eu e a maioria dos brasileiros
estamos no meio destes dois pólos. Me preocupo com alguns relatos de pessoas
confiáveis que viram a realidade de vocês em seu país, mas sei que não existe
relato isento e me reservo a não julgar o que acontece com vocês neste momento. Saibam que se
fizerem um bom trabalho, vocês serão louvados. Mas atentem para a
responsabilidade, pois neste momento muita gente estará torcendo para que vocês
façam bobagem para ganhar a mídia dizendo “eu não disse que os cubanos não
servem?”. Esta perseguição não é pessoal, mas ideológica, e tende a se acentuar
considerando que temos eleições presidenciais ano que vem no Brasil. Desejo
serenidade a vocês, e boa sorte.
Termino
por aqui. Acima de qualquer coisa está o novo povo, e já que foi esse o caminho
escolhido pelo governo brasileiro e por vocês, torço do fundo do coração que
vocês consigam ajudar este povo. O debate político continuará, e estará
observando vocês de perto. Boa sorte.