segunda-feira, 21 de abril de 2014

Lula e o SUS

Você pode amá-lo ou odiá-lo, e é dificil achar quem esteja no meio termo. Lula é, sem sombra de dúvidas, a maior figura política da história recente deste país, e como presidente sua dimensão histórica está no nível de Juscelino Kubitschek ou de Getúlio Vargas. Sua aprovação popular é tão grande que elegeu sua sucessora sem maiores dificuldades mesmo com a inexperiência política dela, e seu nome ainda é aclamado pelos que desejam uma eleição presidencial mais fácil para o PT (pois ao que parece, Dilma não enfrentará calmaria nos próximos meses).

Por sua influência sobre o partido do governo e sobre a própria presidente da república, e por ter seu nome insistentemente envolvido na eleição deste ano, acho que os posicionamentos dele sobre temas vitais para a sociedade brasileira merecem uma análise bastante cuidadosa.

Lula chamou blogueiros que apoiam o governo e o seu partido para uma conversa, uma entrevista coletiva. Ela pode ser vista na íntegra no YouTube, mas recomendo que quem se interesse veja por partes para pegar direitinho a opinião sobre cada tema.

Ainda não assisti tudo, me detive à parte em que ele fala da saúde. E fiquei assombrado.

Recomendo que você assista a essa parte AQUI antes de seguir com a leitura, para poder se situar em relação ao que vou comentar. E claro, formar sua opinião antes de ler a minha.

Assistiu? Ótimo. Então vamos lá.

Ele começa dizendo que conhece "os três níveis de tratamento que tem o ser humano neste país", que seriam o SUS (que na época em que ele menciona ter usado era INAMPS, e era MUITO diferente), os planos de saúde mais baratos e o privado representado pelo Sírio-Libanês. Depois emenda dizendo que os planos de saúde não vão resolver o problema deste país. Até agora tudo ótimo.

Emenda que sempre insistiu com seus ministros da Saúde que "não é possível levar saúde de qualidade às pessoas se não tiver dinheiro", numa referência ao subfinanciamento do SUS. Melhorou, não foi?

Aí vem a primeira pedrada: "Para dar acesso à alta complexidade e aos especialistas, precisa de dinheiro". Opaaaaa!!!! Ao falar de saúde de qualidade a menção que se faz é à "alta complexidade e aos especialistas". Claro que precisamos dele sim, talvez o Lula tenha esquecido que, alinhado com os sistemas de saúde de maior qualidade no mundo, o SUS foi planejado em torno da Atenção Primária e de bons médicos generalistas (aqui no Brasil chamados de Médicos de Família e Comunidade). Vai ver que ele corrige isso mais na frente na entrevista.

Daí ele emenda críticas ao fim da CPMF, no que eu concordo plenamente com ele. Mas olha o que ele diz: "ao acabar com a CPMF, eles tiraram, só naquele ano, o equivalente a 50 bilhões da saúde". Beleza.

No meio da fala ele menciona o subsídio aos planos de saúde privados, através de dedução no IR, e o classifica como "um privilégio que nós temos e que o pobre não tem". Aí quando eu penso que ele vai colocar isso como um problema que deve ser resolvido, vem outra pedrada: "quando eu vou no Sírio Libanês (sempre ele, nota minha) fazer check-up, eu chego lá, os melhores médicos e as melhores máquinas!"

(este que vos escreve vai ali ter uma convulsão de desgosto e volta em instantes)

(continuando)

Olhem a descrição extremamente real que ele dá: "pra fazer um check-up hoje ninguém pergunta mais o que você tem, se tá com dor de barriga, tá indo ao banheiro, tá urinando bem, ninguém pergunta mais isso! Chega lá, o cara fala 'máquina 1: Pá', 'máquina 2: pá', máquina 3: pá'. Você passa numa série de máquinas, tira exame de sangue, e o cara te dá o resultado: você tá bom ou tá mal". Quando eu achei que, num surto de lucidez, ele ia CRITICAR este modelo, ele emenda: "o povo não tem acesso a isso, e se a gente não tiver dinheiro, a gente nunca vai fazer com que ele tenha."

(só mais uma convulsãozinha, ok?)

Quer dizer que o dinheiro a mais que ele defende para o SUS é pra ISSO???? Pra dar acesso a ISSO???? Lula, sinceramente, NÃO, OBRIGADO. Esta porcaria de modelo de check-up que você acha a coisa mais linda na verdade é um grande embuste. Sei que você viajou bastante durante seu mandato, e talvez tenha aproveitado pra ver muita coisa, mas seguramente você não aprendeu nada sobre sistemas de saúde por aí.

Seguindo: "as pessoas falam: 'ah, mas é falta de gestão'. Possivelmente tem um pouco de gestão, mas (o problema) é dinheiro de verdade". Não, companheiro. O problema de gestão é IMENSO. E reside na falta de qualificação generalizada dos gestores do SUS, agravada pela municipalização da gestão. Vocês sabiam que pelo menos metade dos secretários municipais de saúde não tem nem curso superior na área, ou pelo menos em administração? Que eu já vi até motorista de ambulância indicado como secretário de saúde por conveniência político-partidária? Não adianta aumentar o financiamento sem melhorar a gestão, senão vai ter mais dinheiro na mão de gestores ruins, ou seja, o dinheiro vai para o lixo (e uma parte para os bolsos de alguns).

Daí ele começa a falar do "Mais Médicos", dizendo que o programa provou que faltavam médicos no interior, que tem excesso de médicos na Avenida Paulista, essas coisas. Verdade. E emenda: "o Mais Médicos não resolve o problema, vai agravar o problema". Olha que bom. Mas como de costume, outra pérola: "Porque na hora em que a pessoa tiver acesso ao primeiro médico, vai precisar do primeiro especialista".

Uma demonstração de ignorância absoluta sobre o modo de funcionamento de um sistema como o SUS. Se o sistema é baseado na APS, então companheiro, 80 a 90% dos problemas serão resolvidos ali, no primeiro ponto de contato do usuário com o sistema. Serão resolvidos pelos médicos de família e comunidade e pelos demais membros das Equipes de Saúde da Família.

Não que a falta de especialistas não seja um problema. Mas quando o guru do partido que governa o país, ele próprio tendo sido presidente por 8 anos centraliza a solução da saúde em "mais dinheiro para dar acesso a mais especialistas" (ele ainda emenda algumas questões como credenciar a rede especializada do país para atender pelo SUS e em aumentar os honorários médicos), vocês não acham que tem algo errado?

Ele ainda chega a dizer que "praticamente não existe mais clínico geral, todo mundo é especialista em algo, EU NEM SEI SE É BOM OU É RUIM. DEVE SER BOM. O povo deve ter acesso a isso". Ter acesso a isso é ruim, companheiro. Ter a maioria dos médicos como especialista é ruim, companheiro. E saber disso é o mínimo que se espera de alguém que estuda o que acontece no mundo pra poder entender o próprio país.

A ignorância de um ícone como Lula em relação ao que deveria ser o SUS, a quais foram as disputas que deram a ele o formato que tem, o desconhecimento da figura do Médico de Família e Comunidade, o esquecimento da Estratégia Saúde da Família (nem sequer mencionados em mais de 10 minutos de fala sobre a saúde no Brasil. O homem só falou em hospital) mostram que o futuro do SUS, ao contrário do que ele prega, é sombrio. A não ser, claro que um dos candidatos faça uma fala diferente da que ele fez com os companheiros blogueiros. O que eu duvido muito.

p.s. Ele ainda teve a cara de pau de reclamar dos estados em relação à Emenda 29. Só não mencionou que o governo Dilma e sua passe de apoio no congresso trabalharam para retirar da emenda a obrigação do governo federal de investir pelo menos 10% do PIB na saúde, mas mantiveram os percentuais dos estados (12%) e municípios (15%). E ainda que Dilma vetou a possibilidade de que revisões positivas no cálculo da variação do PIB significassem mais dinheiro pro orçamento da saúde.


2 comentários:

  1. Amigo Rodrigo, há anos ando muito cabisbaixo com a visão política da saúde, da falta de alguém que possa realmente falar a este povo da política o que é e como se faz saúde. Estamos presos a um marketing mediocre - que reage a pessoas que pedem coisas influenciadas pela mídia.
    Beleza de post

    ResponderExcluir
  2. Parabéns, Rodrigo, excelente texto. Apenas dou um humilde diagnóstico do companheiro Lula: SiLibanite. Ou seja, ele se trata no Sírio Libanes, esse é o padrão, o referencial, o paradigma que ele está usando. Se ele e todos os companheiros se tratassem conosco que somos médicos da APS para depois irem a um especialista, também do SUS, isso mudaria radicalmente o discurso do companheiro.

    ResponderExcluir