Quando eu tinha uns 18, 20 anos, havia um funcionário do prédio onde eu morava que era conhecido da minha família desde criança. Ele tinha um déficit auditivo importante (aparentemente resolveria com uso de aparelho auditivo, mas ele não queria usar alegando que "as pessoas falavam muito alto" - essa história talvez renda outro post um dia). Salvo engano era analfabeto também, um "analfabeto funcional".
Esse camarada gostava muito da minha família, e tinha uma relação interessante comigo: a cada eleição ele me perguntava em quem votar. Alegava que as demais pessoas mandavam ele voltar em ladrão, e eu saberia quem mereceria o voto dele. Não sei de onde ele tirou isso, porque embora eu já tivesse uma visão política de esquerda (graças às excelentes influências familiares e ao movimento estudantil), não me lembro de ter tido com ele qualquer conversa nesse sentido.
Pois bem: eu sempre indicava. Não adiantava tentar explicar porque fulano era melhor que beltrano, ele não queria saber. Só me pedia que anotasse em um papel os números dos candidatos para que ele levasse a "colinha" pra urna. E assim eu fiz eleição após eleição, até perdermos contato. Ele era não apenas analfabeto em relação à capacidade de leitura e escrita, mas um entre tantos "analfabetos políticos". Pessoas que têm dificuldade em entender o assunto, seja por falta de bagagem, seja por preguiça, seja por desprezar o assunto.
Eu lembrei dessa história hoje ao ler o termo "analfabeto científico". Pensei imediatamente na enorme quantidade de médicos que não busca atualização em literatura científica. Para estes médicos, basta alguém dizendo o que fazer: solicite este exame, prescreva aquele medicamento. Eu tenho colegas formados há 10 anos ou mais que ainda repetem as mesmas condutas da época em que se formaram sem questionar. Outros que se "atualizam" em eventos financiados pela indústria farmacêutica. E por aí vai.
O funcionário do prédio onde eu morava parecia se importar com o seu voto, mas de repente achava que entender isso mais a fundo não era pra ele. Será que os médicos "analfabetos políticos" são assim também? Sabem que é importante ter boas práticas, mas acham que "não é pra eles" entender as evidências científicas mais a fundo? Se for esse o caso, uma pena. Porque quem não gosta de política está sujeito a ser governado por quem gosta. E médico que não gosta de estudar de verdade está sujeito a quem?
terça-feira, 25 de agosto de 2015
Analfabetismos
quinta-feira, 21 de maio de 2015
Um dia de um médico de família
Pra mim a melhor maneira de celebrar é mostrar mais como é o nosso cotidiano, então eu finalmente terminei a tradução de um texto sensacional publicado no mês passado por uma colega britânica chamada Zoe Norris.
O original está AQUI. A tradução é livre, não chancelada pela autora e quaisquer erros se devem à imperícia do tradutor, e nada mais.
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terça-feira, 3 de fevereiro de 2015
Conversa de engarrafamento
sexta-feira, 2 de janeiro de 2015
Uma historinha pro ano novo
Eu tive uma crise de dor lombar nos últimos dias como nunca tinha tido. Melhorei antes da noite da festa de Réveillon graças à mudança na posição de dormir, alguma atividade física e uns comprimidos (quem me conhece sabe o quanto eu os evito), mas ainda estava meio torto ontem. Ao sair de casa rumo à praia, pra ver a queima de fogos de artifício à meia noite, uma das minhas filhas pediu pra ir "no meu pescoço", o que significa "sentada nos meus ombros" (ou "na cacunda"; nordestinos entenderão). Ainda tinha dores, mas sob protesto de alguns parentes que não queriam que eu forçasse a coluna, coloquei a pequena sobre os ombros e segui. Na volta, com dores e já de mãos dadas com a pequena, que estava bem feliz, eu vi uma senhora de cabelos curtinhos, grisalhos, andando com imensa dificuldade, apoiada por dois homens que soltavam palavras de estímulo o tempo todo. "Vamos!", "Isso! "," Agora descansa, sem problema!".
Impossivel não lembrar da minha mãe, que estava nas mesmas condições há apenas 1 ano, e que este ano já não estava com a gente. Pensei na hora nela, na falta que fazia naquele momento, e em quantos Réveillons ainda terei com minhas filhas, e em quantos ainda poderei carregar uma delas nos ombros ou abraçar a outra que tinha medo dos fogos e depois ir pular ondas com ela pra passar o medo... e nessa hora as costas não doíam mais, embora tivesse uma lagrimazinha no olho...
Um feliz 2015 pra vocês. Que tenham muitos momentos felizes, que tenham a sabedoria de reconhecê-los e a coragem de aproveitá-los.
sábado, 29 de novembro de 2014
O câncer no Brasil
Boas notícias, não?
Não necessariamente.
Vamos aos dados ressaltados pelo Ministério da Saúde. O estudo pode ser acessado no site do The Lancet.
"Segundo o estudo, a taxa de sobrevivência para o câncer de mama no Brasil aumentou de 78%, em 2000, para 87%, em 2005, mesmo percentual registrado em países como os Estados Unidos. Para o câncer de próstata, o índice foi ainda maior, chegando a 96% de sobrevivência, mais que o dobro se comparado à chance de sobrevivência no mundo, que é de 40%."
Primeiro a gente tem que definir o que seria "sobrevivência". A pesquisa trabalhou com a taxa de sobrevivência em cinco anos, ou seja, o percentual de pessoas que estavam vivas cinco anos após receberem o diagnóstico de câncer. O problema com esse indicador é que ele pode estar sendo mascarado por um problema importante, mas pouco discutido: o sobrediagnóstico.
Recomendo a leitura do seguinte texto: The Case Against Early Cancer Detection, de Christie Aschwanden. Nele, a autora fala sobre as velocidades diferentes de evolução de tumores diferentes, como isso pode estar relacionado com o fato de que os programas de rastreamento dificilmente conseguem demonstrar redução da mortalidade pelas doenças que pretendem combater, e que isso pode ser explicado pelo sobrediagnóstico do câncer, ou seja, pelo diagnóstico e tratamento de cânceres que não trariam problemas às pessoas supostamente beneficiadas pelo rastreamento.
Agora pense: se estamos diagnosticando mais cânceres sem diferenciar quais deles matariam e quais não, como isso pode se refletir na sobrevivência em cinco anos após o diagnóstico? Temos duas possibilidades:
- Diagnosticamos cânceres que matariam: logo, podemos tratá-los rapidamente e assim a taxa de sobrevivência aumenta;
- Diagnosticamos cânceres que não matariam: assim, incluiríamos na lista de "doentes" pessoas sem problemas, e o aumento da taxa de sobrevivência estaria "contaminado" por sobreviventes de doenças que não matariam; ou seja, não sobreviveram a nada, apenas inflaram as estatísticas.
Veja que o aumento na taxa de sobrevivência em cinco anos acontecerá de qualquer maneira após um programa de rastreamento, seja por de fato descobrirmos e tratarmos precocemente doenças letais, seja por diagnosticar gente que não deveria estar nesta lista.
Vamos a outro dado apontado pelo Ministério da Saúde:
Para o rastreamento da doença, a mamografia é o exame mais eficiente. Entre 2010 e 2013, houve aumento de 51,1% nos exames realizados pelo Sistema Único de Saúde (SUS) em mulheres de 50 a 69 anos. A detecção precoce do tumor e início do tratamento aumentam as chances de cura.
Primeiro um detalhe: o estudo do Lancet foi de 1995 a 2009, então por que raios o MS fala em exames realizados entre 2010 e 2013? Vamos olhar para o que acontece com o rastreamento no período do estudo, mais especificamente o número de mamografias realizadas, o número de internações por câncer de mama e a taxa de mortalidade da doença. Não achei dados até 1997, mas podemos olhar os dados entre 1998 e 2009 (fonte: DATASUS):
Observem que embora o número de mamografias triplique no período, e as internações quase dupliquem (sinalizando que ocorrem mais diagnósticos de câncer dando entrada em hospitais, provavelmente para fazer cirurgias, radioterapias, quimioterapias, etc.), a taxa de mortalidade fica inalterada (mais precisamente cai um pouco no período inicial, depois começa a subir até superar um pouco a mortalidade inicial).
Ou seja, fazer mais mamografias não necessariamente significa que morrem menos mulheres por câncer de mama. E analisar o sucesso do rastreamento por mamografia a partir da taxa de sobrevivência não faz sentido porque como vimos anteriormente, esta taxa pode estar mascarada pelo sobrediagnóstico.
Outra pista pode estar na taxa de sobrevivência a outros cânceres. Obviamente que existem cânceres mais mortais do que outros. A maioria das leucemias hoje em dia é curável, o que não acontece com a maioria dos cânceres de pulmão. Mas quando a taxa de sobrevivência aumenta entre os cânceres que rastreamos, mas não sobe (ou até cai) entre os cânceres que não rastreamos, talvez seja um outro sinal de que a taxa de sobrevivência dos primeiros pode estar "contaminada" pelos "doentes que nunca foram (e provavelmente nunca seriam) doentes". O estudo menciona que:
- A sobrevivência para os cânceres de estômago, reto e leucemias caiu;
- A sobrevivência para os cânceres de próstata e mama subiu;
- A sobrevivência para os cânceres de colo uterino se manteve estável.
Vamos olhar rapidamente para a próstata. Segundo o MS, "O segundo câncer mais letal entre os homens brasileiros é o de próstata. As taxas se mantém estáveis: 12,4 a cada 100 mil, em 2002, para 13,65, em 2012. Para o diagnóstico deste tipo de câncer, os testes PSA realizados aumentaram em 67% entre 2008 e 2013. Em relação às biópsias de próstatas, foram realizados 44.924 procedimentos em 2013, o que representa 20% a mais do que em 2012". Nas palavras do próprio governo, portanto, aumentamos bastante a oferta de exames de PSA e biópsias e isso não teve qualquer impacto na taxa de mortalidade. Mais um belo argumento a favor da existência do grande problema: sobrediagnóstico.
O grande problema na mortalidade por câncer no Brasil hoje não é a falta de rastreamento. É o diagnóstico tardio (por demora do médico em perceber a possibilidade de doença, por demora dos exames complementares que confirmam o diagnóstico como tomografias e biópsias) e a dificuldade no acesso ao tratamento (encaminhamentos para especialistas costumam demorar, cirurgias demoram a ser agendadas, e a fila de espera para quimio e radioterapia é assustadora). Insistir nos rastreios e ficar se gabando por aumento na sobrevida em 5 anos é na melhor das hipóteses pura ignorância.
domingo, 26 de outubro de 2014
Um diálogo com o coração antes da votação
Eleição pra mim sempre foi uma coisa massa. E sempre culminou com o dia da votação: acordar, tomar um banho, ir andando até o local de votação olhando para as pessoas, ouvindo as conversas, observando, ansioso para o(a) meu(a) candidato(a) sair vencedor. Em alguns momentos, até sair andando pela rua encontrando amigos, companheiros de batalha, trocando idéias.
Hoje eu vou porque é o jeito. Pensei em não ir e pagar a multa, mas não. Preciso viver o luto das eleições pra mim.
Até esse momento pensei em não anular o voto. De última hora, ouvir o coração (com o perdão da metáfora cafona) e escolher alguém.
Pois estou ouvindo o meu coração. E ele chora. E eu preciso respeitá-lo. Se a cabeça não fechou a questão ainda, vou deixar o coração escolher. E ele, mais do que qualquer coisa, não quer nenhum dos dois. Encolhido, envergonhado, ele me confidencia isso. Mas quando pergunto "E depois da eleição, o que faremos?", ele infla, levanta sua cabeça imaginária e diz: "o de sempre, velho. Continuamos na luta".
É isso. Bom voto pra vocês.
quarta-feira, 22 de outubro de 2014
Um outubro rosa de verdade
- Bom dia, doutor. Olhe, eu vim aqui pra o senhor me dar um encaminhamento para a ginecologista.
- Ok. A senhora está sentindo alguma coisa?
- Não, estou ótima, é só pros exames de rotina.
- Certo. Deixa eu ver aqui...a senhora tem 70 anos, né?
- Isso, doutor.
- E a senhora faz esses exames de rotina sempre?
- Faço, desde que eu era jovem. Sempre me cuidei muito. Todo ano eu faço o preventivo e a mamografia.
- E já deu alguma alteração nesses exames?
- Não, doutor. Nunca. Também...eu faço por onde. Caminho todos os dias, como muita fruta, muita verdura, gosto de linhaça, de aveia...não como carne vermelha, viu?
- E a senhora tem algum outro problema de saúde, que não seja ginecológico?
- Não, doutor. Nada. Nem pressão alta, nem diabetes, nunca tive nada disso.
- Certo. E se eu disser que a senhora não precisa mais desses exames de rotina?
- Preciso não?
- Não. Se a senhora fez exames com a ginecologista regularmente esse tempo todo e não encontrou nada, pode ficar tranquila que provavelmente não vai ter problemas com essas doenças. O preventivo a gente para de fazer aos 64 anos. E os exames da mama, aos 69. Então a senhora não precisa mais.
- E por que os médicos dizem que a gente tem que fazer os exames mesmo asism?
- Provavelmente pra gerar consultas e exames e ajudar eles a pagar as contas do mês.
- É mesmo, né?
- Dona Maria, com a saúde que a senhora tem, posso lhe dar um conselho?
- Pode.
- Passe longe da gente. Venha só quando realmente necessário. Do jeito que médico gosta de procurar coisa, daqui a pouco arrumam algum problema pra senhora. Se a senhora precisar de algo, pode vir, mas relaxe com esse negócio de exames de rotina.
- (Ri.) Obrigado, doutor. Gostei da sinceridade. O senhor tá certo. Se eu precisar eu venho, mas se não...vou curtir a vida.
- Isso, dona Maria. Vá curtir a vida.