terça-feira, 25 de agosto de 2015

Analfabetismos

Quando eu tinha uns 18, 20 anos, havia um funcionário do prédio onde eu morava que era conhecido da minha família desde criança. Ele tinha um déficit auditivo importante (aparentemente resolveria com uso de aparelho auditivo, mas ele não queria usar alegando que "as pessoas falavam muito alto" - essa história talvez renda outro post um dia). Salvo engano era analfabeto também, um "analfabeto funcional".
Esse camarada gostava muito da minha família, e tinha uma relação interessante comigo: a cada eleição ele me perguntava em quem votar. Alegava que as demais pessoas mandavam ele voltar em ladrão, e eu saberia quem mereceria o voto dele. Não sei de onde ele tirou isso, porque embora eu já tivesse uma visão política de esquerda (graças às excelentes influências familiares e ao movimento estudantil), não me lembro de ter tido com ele qualquer conversa nesse sentido.
Pois bem: eu sempre indicava. Não adiantava tentar explicar porque fulano era melhor que beltrano, ele não queria saber. Só me pedia que anotasse em um papel os números dos candidatos para que ele levasse a "colinha" pra urna. E assim eu fiz eleição após eleição, até perdermos contato. Ele era não apenas analfabeto em relação à capacidade de leitura e escrita, mas um entre tantos "analfabetos políticos". Pessoas que têm dificuldade em entender o assunto, seja por falta de bagagem, seja por preguiça, seja por desprezar o assunto.
Eu lembrei dessa história hoje ao ler o termo "analfabeto científico". Pensei imediatamente na enorme quantidade de médicos que não busca atualização em literatura científica. Para estes médicos, basta alguém dizendo o que fazer: solicite este exame, prescreva aquele medicamento. Eu tenho colegas formados há 10 anos ou mais que ainda repetem as mesmas condutas da época em que se formaram sem questionar. Outros que se "atualizam" em eventos financiados pela indústria farmacêutica. E por aí vai.
O funcionário do prédio onde eu morava parecia se importar com o seu voto, mas de repente achava que entender isso mais a fundo não era pra ele. Será que os médicos "analfabetos políticos" são assim também? Sabem que é importante ter boas práticas, mas acham que "não é pra eles" entender as evidências científicas mais a fundo? Se for esse o caso, uma pena. Porque quem não gosta de política está sujeito a ser governado por quem gosta. E médico que não gosta de estudar de verdade está sujeito a quem?

quinta-feira, 21 de maio de 2015

Um dia de um médico de família

No dia 19 tivemos a comemoração do dia mundial do médico de família e comunidade (MFC).

Pra mim a melhor maneira de celebrar é mostrar mais como é o nosso cotidiano, então eu finalmente terminei a tradução de um texto sensacional publicado no mês passado por uma colega britânica chamada Zoe Norris.

O original está AQUI. A tradução é livre, não chancelada pela autora e quaisquer erros se devem à imperícia do tradutor, e nada mais.

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“Eu? Sou apenas uma MFC...”

Eu fui a uma reunião da turma da escolar há alguns anos. Quando a conversa inevitavelmente seguiu sobre trabalho, e o que cada um estava fazendo hoje em dia, o meu foi sem dúvidas o emprego menos excitante. “Você é uma médica? Qual a especialidade?” Após o décimo comentário eu já queria mentir e dizer que era uma cirurgiã fetal, que operava pequenos bebês antes do nascimento, na linha de frente da tecnologia e do glamour medico, ou uma pesquisadora inovadora, próxima de descobrir a cura do câncer. Talvez uma neurocirurgiã, ou uma médica intensivista?
Eu me flagrei dizendo “sou apenas uma MFC”, e me encolhi em um canto. Não existem MFC suficientes. Jovens médicos não pretendem fazer residência em MFC. Com o estágio atual do NHS[*], há muita mídia negativa sobre o futuro da MFC, e médicos jovens a consideram uma especialidade insegura. Eles não sabem o que acontecerá nos próximos cinco ou dez anos. Sabem apenas que a imprensa nos odeia, os políticos nos acenam e depois nos ignoram, e isso os tem afastado da especialidade.
Ser um MFC não tem a ver com glamour. Não usamos equipamento de alta tecnologia. Não se trata de pesquisas inovadoras, ou de gritar “me dê um pouco de paracetamol, rápido!”. Existe muito pouco drama. Tem a ver com o desafio de lidar com tudo em uma pequena porção de tempo. Com ter a habilidade de se conectar instantaneamente com um paciente que você nunca viu antes. É lidar com pessoas normais vivendo vidas normais, e com os problemas que as afligem. Se você acha que está acima de tratar hemorroidas, indigestão, candidíase, eczema, então não é trabalho para você. Se você acha que não importa o quanto não-glamurosos estes problemas e seus tratamentos sejam, as pessoas podem sofrer por causa deles, então talvez seja. Eu sou uma MFC e eu posso cuidar destes problemas. Eu posso cuidar das pessoas. E embora não seja sexy ou chame a atenção das pessoas, faz a diferença na vida dos meus pacientes. Então eis um exemplo do tipo de paciente que eu costumo atender; aquele para o qual eu faço a diferença. Normalmente com pequenos atos, mas atos que são importantes para eles, e que me ajudam a lembrar porque eu escolhi este trabalho.
A mulher de 70 anos que eu tratei por uma infecção urinária – uma coisa tão simples de resolver. Na semana seguinte ela me trouxe um pedaço de bolo, que ela guardou do aniversário de uma amiga, porque ela se sentiu bem o suficiente para ir e me deu mais créditos por isso do que eu merecia.
A mãe que chorou de alívio quando eu a disse que ela não estava fazendo nada de errado com seu novo bebê. Que bebês não dormem a noite inteira, que ela não o faria mal abraçando-o longamente, e que ela está sendo brilhante com seu bebê de oito semanas.
O veterano de guerra que veio semana passada com seu filho, e achou que eu fui acolhedora o suficiente para retornar essa semana, admitindo que tem tido pesadelos e lembranças constantes do seu serviço, mas que nunca tinha dito isso a ninguém.
A senhora de meia-idade com sintomas da menopausa. Suas amigas falaram sobre as ondas de calor, mas ninguém mais reclamou de dor durante a relação sexual. Ela está preocupada, achando que não é normal. Conversamos sobre as possibilidades de tratamento disponíveis para ajudá-la.
O garoto de 17 anos envergonhado por ter acne. Eu o disse que poderia tratar o problema e que ele não precisaria mais lidar com isso; eu sei que isso fará uma grande diferença.
O homem convencido de que tinha câncer – quando eu o disse que era apenas um nódulo de gordura, ele pareceu prestes a chorar.
A criança de quatro anos que ouviu “comporte-se, ou o médico te dará uma injeção”. Gasto 15 minutos convencendo-a de que não farei isso. Ela correu e me deu um abraço no final de sua consulta.
A visita feita pela enfermeira à senhora que se queixava de piscar os olhos. “Eu ficava irritada com todos aqueles velhos olhando para mim”, ela me disse resmungando. Ela tem 98 anos.
O casal de 14 anos de idade que veio pedir ajuda para evitar uma gravidez. Conversamos sobre todas as opções; os riscos e benefícios. Ambos entenderam a decisão que haviam tomado, e eu os encorajei a voltar a qualquer momento se tivessem outras dúvidas.
A senhora idosa que veio com um simples quadro de manchas na pele. Quando eu perguntei se havia alguém que pudesse ajudá-la a aplicar um creme nas suas costas, ela chorou. Começou a falar sobre o seu marido. Ele havia morrido dois anos antes, e ela sente que já deveria “ter passado por cima disso”. Ela se sente estranha por ainda falar nele para familiares e amigos, pois todos eles já superaram a perda e ela não foi capaz disso. Eu disse que ela nunca superará isso de verdade. Não tenho mais nada a oferecer além de escutá-la.
O homem que entrou mancando após pisar em um vidro quebrado na noite anterior. Ele tem medo de hospitais e por isso não procurou atendimento de urgência, mesmo sabendo que deveria ter ido. Enquanto eu removo gentilmente o vidro ele se encolhe o tempo todo e agradece por não obrigá-lo a ir ao hospital. Minha tentativa de curativo é risível, mas ele sai bastante satisfeito.
O abscesso que se rompe enquanto eu o examino – alívio instantâneo para a paciente. Estranhamente satisfatório pra mim também.
O parente do paciente que após uma visita domiciliar me deu um livro de poesias, porque imaginou que eu apreciaria os sentimentos contidos nele.
O cartão de agradecimentos de um paciente viciado em tranquilizantes. Quando nos conhecemos, eu me recusei a prescrever mais medicamentos e o induzi a aceitar uma redução gradual. Achei que ele nunca mais voltaria. Ele nunca me disse obrigado, mas resolveu escrever e me dizer como ele se sentia humano de novo agora.
A professora dedicada, lutando contra uma depressão enorme e que se recusa a tirar uma licença por medo de deixar seus alunos na mão. É uma das poucas ocasiões em que eu assumo a postura “eu sou a sua médica e estou dizendo que você precisa de uma licença”. É paternalista e eu odeio fazê-lo, mas às vezes é necessário. Um mês depois ela está bem melhor e de volta ao trabalho, mais entusiasmada do que nunca.
O homem com pressão alta, que aceitou os quatro novos medicamentos que eu precisei prescrever para tentar controlar seu problema. Cada uma delas trouxe efeitos colaterais e após dois meses estávamos de volta ao ponto de partida. Enquanto me sentia culpada, ele dizia “não se preocupe, doutora, você tentou fazer o melhor. O que mais podemos fazer?”. Deu vontade de abraçá-lo.
A mulher de 19 anos de idade com constipação, assustada por precisar de ajuda médica. Eu a disse que é meu problema favorito para cuidar, porque é muito fácil de resolver. Ela aparenta estar aliviada enquanto eu apresento as opções.
O paciente morador de rua que eu tenho tentado exaustivamente ajudar, mas que é constantemente rejeitado porque nunca consegue agendar consultas. O cartão que ele me trouxe significa mais do que quase tudo que eu já recebi de um paciente. Eu sei o quanto custou para ele pensar nisso, comprar um cartão, achar uma caneta, escrever o nome dele e o meu e trazer para mim.
Todos os pacientes em meu consultório que está sempre 45 minutos atrasado, que não reclamam e dizem que está tudo bem, eles entendem que o dia está corrido. Não existe nada mais estressante para mim, mas com alguns pacientes eu não posso ter pressa. Eu não vou interromper pais em luto após perderem seu bebê para manter minha agenda. Eu não posso fazer a ambulância vir mais rápido para o homem com dores no peito. Eu não tenho controle sobre quanto tempo o hospital leva para atender o telefone e me colocar em contato com o médico que eu preciso consultar. Eu não me nego a ver um paciente com o qual a minha enfermeira está preocupada. Eu faço o melhor que posso.
Estas são as pequenas coisas que fazer o meu dia-a-dia. Estão além dos políticos, das manchetes de jornal, da negatividade. Breves amostras de 10 minutos das vidas das pessoas para as quais eu tento fazer alguma diferença. Na próxima vez em que eles ouvirem como os médicos de família são ruins, eu espero que eles se lembrem da nossa consulta de hoje, e pensem em mim de forma mais gentil. Talvez seja sim um trabalho glamuroso, no fim das contas. Quando você soma todos os atendimentos, eu posso ter feito a diferença para quase 40 pessoas hoje. Não são muitos os que podem dizer o mesmo.




[*] NHS = National Health System, o Sistema Nacional de Saúde britânico.

terça-feira, 3 de fevereiro de 2015

Conversa de engarrafamento

- Pai!
- Oi!
- Por que só existe menino e menina no mundo?
- Como assim?
- Por que só existe menino e menina, e não outra coisa?
- Ehhhh...não sei. Mas o que tu achou que podia ser diferente de menino e menina?
- Sei lá.
- Mas assim...existem muitos tipos de pessoas, meninos e meninas de vários tipos.
- É?
- É. Por exemplo, existem meninos que namoram com meninas. Feito eu, que namoro com mamãe. Mas existem meninos que namoram com outros meninos.
- Como assim?
- Lembra do meu primo? Aquele que foi lá em casa com o marido dele?
- Lembro!
- Então: eles são casados. Menino e menino.
- Aí vão ser um menino-menino e um menino-menina, não é?
- Não, nem sempre. Depende. Mas lembra que eles dois parecem meninos? Então os dois são menino-menino.
- Então eles não vão poder ter um filho...
- Eles não vão poder ter um bebê na barriga. Mas sabia que existem crianças que não tem pai nem mãe. Então: se eles quiserem, eles podem adotar, ficar com uma criança pra cuidar. E aí vira filho deles.
(Silêncio de uns 30 segundos. Ufa.)
- Pai.
- Oi.
- Como é que faz pra cortar a barriga da mãe, pro bebê sair?
- Nem toda mãe precisa cortar a barriga. Na verdade, só precisa cortar a barriga se o bebê não conseguir sair sozinho.
- E ele sai por onde?
- Pelo piupiu. O bebê fica na barriga, cresce, e quando fica pronto ele sai pelo piupiu.
- Ah tá...e dói?
- Ah, um pouco, né? Mas passa logo.
- E quando precisa cortar, dói?
- Dói, mas o médico dá anestesia antes de cortar.
- Ah tá.

E finalmente chegamos em casa. Segundo dia de engarrafamento voltando da escola. Ainda me restam pelo menos uns dois ou três meses. Só fico imaginando o assunto de amanhã.

sexta-feira, 2 de janeiro de 2015

Uma historinha pro ano novo

Eu tive uma crise de dor lombar nos últimos dias como nunca tinha tido. Melhorei antes da noite da festa de Réveillon graças à mudança na posição de dormir, alguma atividade física e uns comprimidos (quem me conhece sabe o quanto eu os evito), mas ainda estava meio torto ontem. Ao sair de casa rumo à praia, pra ver a queima de fogos de artifício à meia noite, uma das minhas filhas pediu pra ir "no meu pescoço", o que significa "sentada nos meus ombros" (ou "na cacunda"; nordestinos entenderão). Ainda tinha dores, mas sob protesto de alguns parentes que não queriam que eu forçasse a coluna, coloquei a pequena sobre os ombros e segui. Na volta, com dores e já de mãos dadas com a pequena, que estava bem feliz, eu vi uma senhora de cabelos curtinhos, grisalhos, andando com imensa dificuldade, apoiada por dois homens que soltavam palavras de estímulo o tempo todo. "Vamos!", "Isso! "," Agora descansa, sem problema!".
Impossivel não lembrar da minha mãe, que estava nas mesmas condições há apenas 1 ano, e que este ano já não estava com a gente. Pensei na hora nela, na falta que fazia naquele momento, e em quantos Réveillons ainda terei com minhas filhas, e em quantos ainda poderei carregar uma delas nos ombros ou abraçar a outra que tinha medo dos fogos e depois ir pular ondas com ela pra passar o medo... e nessa hora as costas não doíam mais, embora tivesse uma lagrimazinha no olho...

Um feliz 2015 pra vocês. Que tenham muitos momentos felizes, que tenham a sabedoria de reconhecê-los e a coragem de aproveitá-los.

sábado, 29 de novembro de 2014

O câncer no Brasil

O Ministério da Saúde repercutiu estudo publicado no Lancet que destacou a "evolução do Brasil no combate aos cânceres mais comuns".

Boas notícias, não?

Não necessariamente.

Vamos aos dados ressaltados pelo Ministério da Saúde. O estudo pode ser acessado no site do The Lancet.

"Segundo o estudo, a taxa de sobrevivência para o câncer de mama no Brasil aumentou de 78%, em 2000, para 87%, em 2005, mesmo percentual registrado em países como os Estados Unidos. Para o câncer de próstata, o índice foi ainda maior, chegando a 96% de sobrevivência, mais que o dobro se comparado à chance de sobrevivência no mundo, que é de 40%."

Primeiro a gente tem que definir o que seria "sobrevivência". A pesquisa trabalhou com a taxa de sobrevivência em cinco anos, ou seja, o percentual de pessoas que estavam vivas cinco anos após receberem o diagnóstico de câncer. O problema com esse indicador é que ele pode estar sendo mascarado por um problema importante, mas pouco discutido: o sobrediagnóstico.

Recomendo a leitura do seguinte texto: The Case Against Early Cancer Detection, de Christie Aschwanden. Nele, a autora fala sobre as velocidades diferentes de evolução de tumores diferentes, como isso pode estar relacionado com o fato de que os programas de rastreamento dificilmente conseguem demonstrar redução da mortalidade pelas doenças que pretendem combater, e que isso pode ser explicado pelo sobrediagnóstico do câncer, ou seja, pelo diagnóstico e tratamento de cânceres que não trariam problemas às pessoas supostamente beneficiadas pelo rastreamento.

Agora pense: se estamos diagnosticando mais cânceres sem diferenciar quais deles matariam e quais não, como isso pode se refletir na sobrevivência em cinco anos após o diagnóstico? Temos duas possibilidades:
- Diagnosticamos cânceres que matariam: logo, podemos tratá-los rapidamente e assim a taxa de sobrevivência aumenta;
- Diagnosticamos cânceres que não matariam: assim, incluiríamos na lista de "doentes" pessoas sem problemas, e o aumento da taxa de sobrevivência estaria "contaminado" por sobreviventes de doenças que não matariam; ou seja, não sobreviveram a nada, apenas inflaram as estatísticas.

Veja que o aumento na taxa de sobrevivência em cinco anos acontecerá de qualquer maneira após um programa de rastreamento, seja por de fato descobrirmos e tratarmos precocemente doenças letais, seja por diagnosticar gente que não deveria estar nesta lista.

Vamos a outro dado apontado pelo Ministério da Saúde:

Para o rastreamento da doença, a mamografia é o exame mais eficiente. Entre 2010 e 2013, houve aumento de 51,1% nos exames realizados pelo Sistema Único de Saúde (SUS) em mulheres de 50 a 69 anos. A detecção precoce do tumor e início do tratamento aumentam as chances de cura.

Primeiro um detalhe: o estudo do Lancet foi de 1995 a 2009, então por que raios o MS fala em exames realizados entre 2010 e 2013? Vamos olhar para o que acontece com o rastreamento no período do estudo, mais especificamente o número de mamografias realizadas, o número de internações por câncer de mama e a taxa de mortalidade da doença. Não achei dados até 1997, mas podemos olhar os dados entre 1998 e 2009 (fonte: DATASUS):









Observem que embora o número de mamografias triplique no período, e as internações quase dupliquem (sinalizando que ocorrem mais diagnósticos de câncer dando entrada em hospitais, provavelmente para fazer cirurgias, radioterapias, quimioterapias, etc.), a taxa de mortalidade fica inalterada (mais precisamente cai um pouco no período inicial, depois começa a subir até superar um pouco a mortalidade inicial).

Ou seja, fazer mais mamografias não necessariamente significa que morrem menos mulheres por câncer de mama. E analisar o sucesso do rastreamento por mamografia a partir da taxa de sobrevivência não faz sentido porque como vimos anteriormente, esta taxa pode estar mascarada pelo sobrediagnóstico.

Outra pista pode estar na taxa de sobrevivência a outros cânceres. Obviamente que existem cânceres mais mortais do que outros. A maioria das leucemias hoje em dia é curável, o que não acontece com a maioria dos cânceres de pulmão. Mas quando a taxa de sobrevivência aumenta entre os cânceres que rastreamos, mas não sobe (ou até cai) entre os cânceres que não rastreamos, talvez seja um outro sinal de que a taxa de sobrevivência dos primeiros pode estar "contaminada" pelos "doentes que nunca foram (e provavelmente nunca seriam) doentes". O estudo menciona que:

- A sobrevivência para os cânceres de estômago, reto e leucemias caiu;
- A sobrevivência para os cânceres de próstata e mama subiu;
- A sobrevivência para os cânceres de colo uterino se manteve estável.

Vamos olhar rapidamente para a próstata. Segundo o MS, "O segundo câncer mais letal entre os homens brasileiros é o de próstata. As taxas se mantém estáveis: 12,4 a cada 100 mil, em 2002, para 13,65, em 2012. Para o diagnóstico deste tipo de câncer, os testes PSA realizados aumentaram em 67% entre 2008 e 2013. Em relação às biópsias de próstatas, foram realizados 44.924 procedimentos em 2013, o que representa 20% a mais do que em 2012". Nas palavras do próprio governo, portanto, aumentamos bastante a oferta de exames de PSA e biópsias e isso não teve qualquer impacto na taxa de mortalidade. Mais um belo argumento a favor da existência do grande problema: sobrediagnóstico.

O grande problema na mortalidade por câncer no Brasil hoje não é a falta de rastreamento. É o diagnóstico tardio (por demora do médico em perceber a possibilidade de doença, por demora dos exames complementares que confirmam o diagnóstico como tomografias e biópsias) e a dificuldade no acesso ao tratamento (encaminhamentos para especialistas costumam demorar, cirurgias demoram a ser agendadas, e a fila de espera para quimio e radioterapia é assustadora). Insistir nos rastreios e ficar se gabando por aumento na sobrevida em 5 anos é na melhor das hipóteses pura ignorância.

domingo, 26 de outubro de 2014

Um diálogo com o coração antes da votação

É a minha décima eleição. Pela primeira vez, não votei pela manhã. Votar sempre foi a primeira coisa a fazer num domingo de eleições, mas faz um tempão que estou aqui no computador procrastinando a ida à seção eleitoral. Motivo: absoluta falta de vontade de ir até a urna eletrônica.

Eleição pra mim sempre foi uma coisa massa. E sempre culminou com o dia da votação: acordar, tomar um banho, ir andando até o local de votação olhando para as pessoas, ouvindo as conversas, observando, ansioso para o(a) meu(a) candidato(a) sair vencedor. Em alguns momentos, até sair andando pela rua encontrando amigos, companheiros de batalha, trocando idéias.

Hoje eu vou porque é o jeito. Pensei em não ir e pagar a multa, mas não. Preciso viver o luto das eleições pra mim.

Até esse momento pensei em não anular o voto. De última hora, ouvir o coração (com o perdão da metáfora cafona) e escolher alguém.

Pois estou ouvindo o meu coração. E ele chora. E eu preciso respeitá-lo. Se a cabeça não fechou a questão ainda, vou deixar o coração escolher. E ele, mais do que qualquer coisa, não quer nenhum dos dois. Encolhido, envergonhado, ele me confidencia isso. Mas quando pergunto "E depois da eleição, o que faremos?", ele infla, levanta sua cabeça imaginária e diz: "o de sempre, velho. Continuamos na luta".

É isso. Bom voto pra vocês.

quarta-feira, 22 de outubro de 2014

Um outubro rosa de verdade

- Bom dia, dona Maria.
- Bom dia, doutor. Olhe, eu vim aqui pra o senhor me dar um encaminhamento para a ginecologista.
- Ok. A senhora está sentindo alguma coisa?
- Não, estou ótima, é só pros exames de rotina.
- Certo. Deixa eu ver aqui...a senhora tem 70 anos, né?
- Isso, doutor.
- E a senhora faz esses exames de rotina sempre?
- Faço, desde que eu era jovem. Sempre me cuidei muito. Todo ano eu faço o preventivo e a mamografia.
- E já deu alguma alteração nesses exames?
- Não, doutor. Nunca. Também...eu faço por onde. Caminho todos os dias, como muita fruta, muita verdura, gosto de linhaça, de aveia...não como carne vermelha, viu?
- E a senhora tem algum outro problema de saúde, que não seja ginecológico?
- Não, doutor. Nada. Nem pressão alta, nem diabetes, nunca tive nada disso.
- Certo. E se eu disser que a senhora não precisa mais desses exames de rotina?
- Preciso não?
- Não. Se a senhora fez exames com a ginecologista regularmente esse tempo todo e não encontrou nada, pode ficar tranquila que provavelmente não vai ter problemas com essas doenças. O preventivo a gente para de fazer aos 64 anos. E os exames da mama, aos 69. Então a senhora não precisa mais.
- E por que os médicos dizem que a gente tem que fazer os exames mesmo asism?
- Provavelmente pra gerar consultas e exames e ajudar eles a pagar as contas do mês.
- É mesmo, né?
- Dona Maria, com a saúde que a senhora tem, posso lhe dar um conselho?
- Pode.
- Passe longe da gente. Venha só quando realmente necessário. Do jeito que médico gosta de procurar coisa, daqui a pouco arrumam algum problema pra senhora. Se a senhora precisar de algo, pode vir, mas relaxe com esse negócio de exames de rotina.
- (Ri.) Obrigado, doutor. Gostei da sinceridade. O senhor tá certo. Se eu precisar eu venho, mas se não...vou curtir a vida.
- Isso, dona Maria. Vá curtir a vida.