sábado, 24 de agosto de 2013

Carta a um médico estrangeiro

Olá, colega. Seja bem-vindo.

Soube que vocês andam preocupados com a recepção que terão por parte de nós, médicos brasileiros.

Imagino que vocês saibam que o Brasil é um país que sempre recebe bem os que buscam contribuir com nossa sociedade. Os japoneses, italianos, alemães, libaneses, entre outras nacionalidades que compõem nossa sociedade podem testemunhar a nosso favor. Não temos conflitos internos que envolvam grupos étnicos, não nos envolvemos em conflitos externos e jamais fomos xenófobos. Pelo contrário. Então fiquem tranquilos, o povo brasileiro os receberá muito bem.

Talvez minha fala não seja muito convincente quando comparada com o que as entidades médicas brasileiras têm dito sobre vocês. Saibam que a maioria dos brasileiros, e arrisco dizer, a maioria dos médicos discordam disso tudo. Não queremos conflitos com vocês. Sabemos que vêm em paz, com o objetivo de trabalhar, e tenho certeza que estarão seguros e tranquilos, no que depender das pessoas que estarão com vocês.

Mas acho que vocês precisam entender o que está acontecendo no Brasil neste momento. Até para poderem contribuir de verdade com as mudanças sociais que nosso país precisa.

A Atenção Primária, (que aqui no Brasil é mais conhecida por Atenção Básica) nunca foi prioridade de governante algum neste país. Por mais que tenhamos observado uma expansão importante da rede de serviços de Atenção Primária nos últimos 20 anos, o Sistema Único de Saúde (SUS) ainda não consegue cobrir nem metade da população brasileira com estes serviços. Isso acontece porque ainda não conseguimos vencer o debate sobre qual a melhor forma de organizar o SUS. Neste debate, entra a discussão sobre a necessidade de mais médicos, e aqui vale apontar alguns de nossos problemas:

1) Sub-financiamento: o Brasil investe, per capita, bem menos que a grande maioria dos países que assumiram o desafio de ter um sistema de saúde de acesso universal). Além de termos pouco dinheiro, pouco dele vai para a Atenção Primária (menos de 10% dos investimentos estatais em saúde);
2) Contratação descentralizada: o Brasil tem 5.560 municípios, e cada um deles precisa desenvolver sua estratégia para atrair bons profissionais, o que gera uma atmosfera que ultrapassa a competição saudável e atinge padrões predatórios, onde quase sempre quem perde é a população;
3) Falta de profissionais médicos, em termos quantitativos e qualitativos: embora estudos mostrem que em duas ou três décadas atingiremos um bom número proporcional de médicos, até lá lidamos com a falta de profissionais mesmo nos grandes centros urbanos. Além disso, não há uma política de estado que direcione a nossa formação para as áreas que mais precisamos, o que piora a distorção;
4) Estrutura precária de trabalho: por não ser prioridade, a Atenção Primária nunca recebe os investimentos necessários para que possa oferecer condições adequadas de trabalho. Lidamos o tempo todo com falta de medicamentos (na unidade de saúde onde trabalho falta Enalapril e Ibuprofeno há quase dois meses, só para citar dois exemplos), de exames (um relato: com frequência o laboratório “esquece” de dosar a hemoglobina glicada das pessoas com diabetes que fazem exames, e só manda os outros resultados) e de consultas com outros especialistas (uma consulta com um cirurgião-geral para resolver uma hérnia inguinal demora cerca de 4 meses, por exemplo).
5) Não existem estratégias de fixação de profissionais nos centros mais afastados: a única iniciativa do estado brasileiro nos últimos 20 anos foi exatamente o programa que trouxe vocês, e sabemos bem que não é suficiente para fixá-los aqui.

A maior parte dos brasileiros que critica a vinda de vocês não é contrária exatamente a vocês, e sim a vinda de vocês sem que sejam dadas as respostas a estes problemas que menciono acima. Vocês são a resposta que pode se aplicar a curto prazo, mas nada além disso. Nem nós, nem vocês conseguirão oferecer a medicina que a população brasileira merece e precisa sem estas respostas. Louvamos a sua disponibilidade em tentar, e esperamos profundamente que consigam alguma coisa. Caso consigam desenvolver uma medicina de qualidade neste cenário ficaremos felizes em aprender a fórmula mágica.

Uma outra crítica que vocês poderão ouvir é em relação ao fato de não terem seus diplomas revalidados. Saibam que o argumento do governo brasileiro é que não vão revalidar seus diplomas exatamente para poder mantê-los “presos” aos municípios que vocês escolheram para trabalhar. Não me parece a estratégia que mais valoriza a autonomia das pessoas, mas se vocês concordam trabalhar nestas condições não cabe a mim julgá-los. Eu não trabalharia, mas enfim.

E se você é cubano e já tem alguma experiência em outros países (como o governo brasileiro tem dito que vocês tem), imagino que já esteja acostumado com o desconhecimento que o mundo tem da realidade cubana. Temos ainda uma polarização ideológica no Brasil que envolve segmentos que louvam a "Revolução Cubana" e outros que demonizam a "Ditadura Cubana". Eu e a maioria dos brasileiros estamos no meio destes dois pólos. Me preocupo com alguns relatos de pessoas confiáveis que viram a realidade de vocês em seu país, mas sei que não existe relato isento e me reservo a não julgar o que acontece com vocês neste momento. Saibam que se fizerem um bom trabalho, vocês serão louvados. Mas atentem para a responsabilidade, pois neste momento muita gente estará torcendo para que vocês façam bobagem para ganhar a mídia dizendo “eu não disse que os cubanos não servem?”. Esta perseguição não é pessoal, mas ideológica, e tende a se acentuar considerando que temos eleições presidenciais ano que vem no Brasil. Desejo serenidade a vocês, e boa sorte.

Termino por aqui. Acima de qualquer coisa está o novo povo, e já que foi esse o caminho escolhido pelo governo brasileiro e por vocês, torço do fundo do coração que vocês consigam ajudar este povo. O debate político continuará, e estará observando vocês de perto. Boa sorte.

segunda-feira, 29 de julho de 2013

Fragmentos do drama obstétrico brasileiro. Baseado em fatos reais.

Cena 1:

Descrição: um casal chega a uma maternidade privada brasileira para o parto do seu bebê. É madrugada, não há ninguém na recepção exceto a recepcionista, que os recebe de forma bastante simpática e começa a conversa padrão, solicitando documentos, dados, etc. Até que...

- E quanto tempo de gestação ela tem?
- 39 semanas e 5 dias...quase 40 semanas já.
- Nossa...que estranho...difícil chegar gente que esperou tanto para o parto.

Cena 2:

Descrição: o casal está sendo atendido pelo obstetra de plantão.

- Boa noite. O que houve?
- Ela perdeu muco durante o dia, e tá perdendo líquido há algumas horas. Não é muito, mas também não é pouco.
- Ok. Quantas semanas?
- 39. Quase 40.
- Vocês querem parto normal?
- Não, a gente sabe que vai ser cesariana por causa das duas anteriores.
- E por que esperaram tanto? Não conseguiram agendar?

Cena 3:

Descrição: o mesmo atendimento, só que agora no exame físico.

- Ok, vamos ver...é, a bolsa não rompeu, mas tem 4 cm de dilatação. Vocês não sente dor nenhuma?
- Não. Sentindo nada.
- É, esse é o problema de esperar muito sabendo que vai ser cesariana...acaba entrando em trabalho de parto.

Cena 4:

Descrição: bloco obstétrico, durante a realização do parto. Cesariana.

- Olha! Líquido amniótico limpinho, com grumos. Tudo ótimo! Nada como esperar pra ter a bebê quando ela está madurinha, quando ela escolhe nascer, né?
- (sorriso)

quinta-feira, 18 de julho de 2013

Uma imagem

Há alguns dias eu recebi um fotógrafo de um jornal de Recife pra fazer umas fotos minhas. Era uma matéria sobre a chegada de médicos estrangeiros, e fui um dos entrevistados. A entrevista acabou incluindo algumas perguntas sobre a minha opção pela medicina de família, e enfim, o camarada veio aqui obter imagens para ilustrar a matéria.
Antes de fazer as fotos acabamos conversando um pouco sobre o tema da matéria, acho que os fotógrafos fazem isso pra tentar captar o clima, sei lá. Eu adoro falar, ainda mais sobre esses assuntos e ainda mais pra quem se interessa em ouvir, e a conversa foi bastante interessante, até que fomos para as fotos.
"O senhor não vai colocar a bata?", perguntou o fotógrafo. Eu ri meio sem jeito, e disse a ele que não costumava usar bata no consultório a não ser que fosse necessário, ao realizar um procedimento ou coisa do tipo. Expliquei que a bata (aos de outras regiões que possam estar lendo isso, "bata" é igual a "jaleco", tá?) era um item de proteção, de segurança contra fluidos, líquidos, enfim, e que eu usava na urgência, não no consultório. Eu acho que não usar a bata acaba me aproximando mais das pessoas que me procuram, pois elimina aquela barreira branca imaculada que pretende me dar uma aura que eu provavelmente nem mereço. Bem, pra fechar, eu disse que se ele queria um registro fiel meu, que me fotografasse sem bata.
"Ok, entendo, tudo bem...então vamos lá: eu vou fotografar quando o senhor aferir a pressão dela (tinha uma paciente na sala, que havia autorizado o registro), tudo bem?"

Lá vou eu.

"Não. Tudo bem nada. Vê só, eu passo em torno de 15 a 20 minutos com uma pessoa no consultório. Aferir a pressão é uma coisa que eu não faço com todo mundo, só quando precisa, e isso me toma menos de um minuto. A parte mais importante da minha consulta é ouvir a pessoa, é tentar entender exatamente o que a traz aqui e o que eu posso fazer por ela. Se tu quer um registro meu que seja fiel à realidade, fotografa a gente conversando!"

Eu sei. Eu sou um chato às vezes. Mas é que haja paciência com aquela mesma foto de um atendimento que sempre tem que envolver a aferição da pressão, ou a ausculta cardíaca, ou uma verificação do reflexo patelar (aquele martelinho no joelho). Por que raios a mídia sempre caracteriza a gente como realizadores destes procedimentos, se eles não são a parte mais importante da consulta? Isso acaba alimentando continuamente a visão do médico que tem que focar nos procedimentos, nos exames, nos medicamentos.

Por fim, depois desses discurso chatérrimo o fotógrafo me propôs uma nova cena: "Então a gente faz assim: eu coloco o aparelhando da pressão e seu estetoscópio em cima da mesa, paradinho aqui, e fotografo vocês conversando. Eu preciso disso pra caracterizar a imagem como sendo em um consultório. Se não for isso, como os leitores do jornal vão saber que estamos em um?"

Beleza. Assim vá lá que seja. Fizemos a foto, e de fato foi isso: se não fosse isso, não daria pra saber se estávamos num consultório ou num guichê do Detran.

Nos despedimos, o fotógrafo saiu satisfeito, gostou da conversa e da imagem, acho. A foto acabou sendo publicada mesmo.

E eu fiquei satisfeito também. Mas com uma pulga atrás da orelha: por que consultórios precisam ter aparelhinhos pra poder parecer com consultórios?


Em tempo: a foto está abaixo, saiu no JC de 30/06/13, e o crédito da imagem é de Bobby Fabisak, do JC Imagem, a quem agradeço a paciência comigo.


quinta-feira, 11 de julho de 2013

Eu, eu mesmo e as mudanças.

Hoje eu estava pensando em como a gente muda de opinião com o tempo. Estabeleci um dialogo imaginário comigo mesmo, só que era "eu" hoje com "eu" cinco anos atrás, e fiquei surpreso por discordar de boa parte do que eu fazia enquanto médico. O mais interessante foi constatar que eu discordo do que eu fazia, mas nem tanto assim dos princípios que levavam àqueles atos. A interpretação dos princípios e consequentemente a escolha dos caminhos é que mudou. Confuso? Eu também, garanto.

Em 2008 eu tinha concluído a residência em Saúde da Familia no IMIP (ainda era multiprofissional, e tinha esse nome) há pouco mais de um ano, e já atuava como médico concursado da prefeitura. Já tinha cerca de um ano na mesma unidade. Na época eu achava que o bom médico de familia era aquele que tinha uma boa formação em saúde pública, e que conhecia muito bem o território onde atuava, incluindo análise de indicadores de saúde, e que tentava fazer alguma coisa pelo maior número de pessoas possível. Embora já naquela época não trabalhasse com agenda em função de programas (os famosos "dias do hipertenso", "saúde da criança" e outras sandices, na opinião do "eu" atual), minha agenda ainda era bastante fechada. Atendia pacientes marcados, muitas vezes com uma ou duas semanas de antecedência, e investia muito tempo em monitoramento de indicadores da área: percentual de hipertensos acompanhados, de gestantes com pré-natal em dia, número de visitas realizadas pelos Agentes Comunitários de Saúde. Adorava protocolos clínicos. Achava que se eu controlasse bem as ações da equipe a gente poderia fazer mais coisas com os poucos recursos disponíveis na unidade de saúde.

Neste intervalo eu passei quatro anos na gestão pública, com a responsabilidade de avaliar/revisar/reformular/conduzir um programa que melhorasse a qualidade dos serviços de APS no estado. E pela primeira vez eu tive a noção de como dá trabalho ficar fazendo essas contas. Aliás, que dava trabalho eu sabia, mas pude dimensionar melhor como isso toma tempo. E como tem gente trabalhando na gestão que poderia fazer isso, deixando o tempo das equipes da saúde para fazer o que a população mais precisa: assistência. Nessa época, lembro de ver uma charge que colocava um médico de família numa bifurcação de uma estrada, onde havia uma placa que apontava para a clínica de um lado, e para a epidemiológica do outro, e sugerir que o camarada deveria se equilibrar entre os caminhos. No diz em que vi isso, um insight: impossível. Somos clínicos, ponto. Devemos conhecer o campo da epidemiologia, mas não nos ocuparmos dele.

Enquanto pensava nessas coisas, conheci gente que pensava diferente. Adotei a tática de ler as coisas contrárias ao que eu pensava. Das duas uma, ou eu mudaria de opinião ou pelo menos aprenderia bons argumentos para mantê-la. E deu muito certo, eu acho.

Hoje eu olho para o médico de familia que eu era há cinco anos e fico muito feliz em ter mudado muito. Atualmente eu penso que eu preciso conhecer as pessoas, não "o território". E que só posso conhecê-las se eu dedicar tempo para isso. E que só poderei dedicar mais tempo pra isso se ficar menos tempo preenchendo planilhas e calculando indicadores, menos tempo dando palestras, atividades em grupo onde as mesmas coisas são repetidas, e mais tempo no consultório, ouvindo, falando, revendo, estudando, pensando. Aprendi também que protocolos servem pra tentar trazer certeza a cenários incertos, e que eu quase nunca preciso das certezas "clinicas" quando eu consigo ouvir e responder aos anseios das pessoas. Resolver as incertezas tem sido mais útil para os anseios do médico do que para os pacientes, pelo menos no âmbito da atenção primária, e essa parece ser a nossa grande diferença, o que nos aproxima das pessoas. E isso é velho, não surgiu agora com o governo dizendo que precisa formar médicos "humanizados" (termo que eu odeio, do fundo do coração).

Na manhã de hoje eu fiz visitas. Fui ver uma senhora que não andava bem por dores crônicas no quadril, e consegui ensiná-la a usar uma muleta e assim conseguir andar um pouco melhor. Estava chovendo muito, e enquanto eu corria pro carro veio uma outra senhora, de guarda-chuva, dizendo que soube que eu estava ali e tinha vindo pra me dar um abraço porque depois de ter passado por muitos médicos, tinha sido eu o que tinha feito alguma coisa por ela pois agora ela se sentia melhor. Fui para a segunda visita, que não foi impedida pelo fato da pessoa a ser visitada estar dormindo, pois deu pra conversar com as filhas dela, sentir um pouco o clima da casa e como elas lidavam com a depressão da mãe (deflagrada pela perda do marido, há dois anos). No caminho resolvi visitar mais uma pessoa, uma mulher cujo marido tinha sido assassinado há um mês. Ela não tinha procurado ajuda, mas fui lá conversar um pouco e foi visível como ela se sentiu cuidada por isso. Tão pouco. Essa semana eu recebi uma mãe que perdeu seu bebê de 4 meses para uma doença que ela nem sabe qual foi. Passei quase uma hora conversando com ela, parecia ser o certo a fazer, e ela me disse uma coisa que não sai da minha cabeça até agora: "doutor, a gente tá acostumado a escolher uma roupa pro nosso filho pra passear com ele. Imagine o que é escolher uma roupa pra enterrar ele?". Chorei quieto, acho que ela nem notou (até porque chorava também, e não precisava se preocupar em ser discreta). Enquanto isso, na recepção as pessoas reclamavam por causa da demora no atendimento. Outro dia um cidadão, completamente bêbado, estava na mesma recepção reclamando porque eu tinha encaminhado ele ao cirurgião para operar sua hérnia inguinal há 3 meses, e a consulta ainda não tinha sido marcada. Chamei ele no consultório e fiquei ouvindo enquanto ele desabafava sobre a impossibilidade de trabalhar, sobre a dor, sobre a incapacidade do governo de organizar um sistema decente, um sistema que responda a uma coisa tão simples. E ele concluiu dizendo: "ainda bem que tem eleição ano que vem". Outro dia uma senhora que eu visitei me ofereceu um bolo de dinheiro em agradecimento ao meu trabalho, e recusá-lo gerou um problema no meu relacionamento com ela, que ficou ofendidíssima. Esse é o meu cotidiano, queridos leitores.

Há cinco anos eu teria atendido as mesmas pessoas, mas medicando, pedindo exames, medindo, fazendo contas, e quando o problema fosse o sistema e não meu, fecharia a porta e mandaria ao psicólogo da rede ou à ouvidoria ou a qualquer lugar que não fosse a minha sala pra não "me atrapalhar". Gosto mais de mim hoje. Meu dia é dedicado a aliviar o sofrimento, não por ser bonzinho, legal ou "humano", mas porque é meu trabalho, fui formado pra isso, fui contratado pra isso, e recebo pra isso. Nenhum governo que proponha medidas populistas e demagogas vai apagar isso. Nenhum movimento corporativista que se aproveita da minha área para defender interesses excusos vai apagar isso. Cada vez mais me orgulho de me pautar pelas pessoas, não pelos gestores, não pela corporação. E quando esse idiota não for mais ministro, e mesmo enquanto os "colegas" parasitas continuarem chupando o sangue do SUS, eu vou continuar sendo médico de pessoas.

Foi bom conversar comigo mesmo na versão anterior. Exercita a tolerância com o outro, renova a crença nas boas intenções, traz a esperança de que tudo passa. Até, e principalmente, eu mesmo. Ainda bem.

segunda-feira, 8 de julho de 2013

Mais médicos, mais saúde. Será?

Depois de tanta polêmica, finalmente saiu o grande plano do Governo Federal para levar mais médicos (ou mais saúde, segundo eles) para o povão. E eu não ia perder a chance de comentar.

Inicialmente uma constatação: o rebuliço surgido após a divulgação do interesse por 6 mil cubanos acabou pressionando o governo a melhorar a "grande" idéia. Pro que se mostrava, a coisa apresentada hoje foi muito menos ruim.

Então bora lá, listando e comentando as propostas:

1) Aumentar vagas de graduação e residência: isso já tinha sido dito, mas hoje saiu que 2/3 das vagas em cursos de medicina serão em instituições privadas. Isso me chamou a atenção. Será que vai ter FIES que sustente tanto estudante de medicina em faculdade particular?
Vale também olhar para os critérios que serão utilizados para autorizar a abertura das novas vagas: o primeiro deles é a relação número de leitos/aluno mínima de 5. O que significa que para abrir uma faculdade com 100 vagas a instituição deve ter 500 leitos hospitalares. Aí você me pergunta: isso é muito, é pouco, é o que? Então eu fui pesquisar no DataSUS e descobri que aqui em Pernambuco isso é muito: Caruaru tem 583 leitos (já somando públicos e privados) na CIDADE INTEIRA. Vitória de Santo Antão tem 476 leitos. Escolhi estas cidades porque são marcadas no mapa exibido na apresentação feita pelo governo hoje. Então deixo a primeira pergunta: vão construir um monte de hospitais, né? Porque o que temos hoje não dá conta. E nesse caso, precisamos mesmo de mais hospitais? (em 2005 tínhamos 2 leitos por 1.000 habitantes, o que já me parece demais).
Outro critério é o máximo de 3 alunos por equipe de atenção básica. Essa é mais esquisita ainda, vamos aos números. Recife tem 243 Equipes de Saúde da Família (ESF), o que significa que sua rede municipal pode receber no máximo 729 estudantes. As 4 faculdades daqui somadas possuem 530 vagas em medicina, o que já ocuparia 176 ESF. Será que temos equipes em condições de serem cenário de aprendizado? Em Recife sabemos que não, e as faculdades hoje fazem uma briga de foice pra conseguir equipes que recebam seus alunos. Aí eu te pergunto: e em Caruaru ou Vitória de Santo Antão? Manteremos o mesmo modelo de formação atual na Atenção Primária (preceptoria por médicos sem formação e muitas vezes sem muito interesse na área)? MEDO.
Ainda tem um lance de critérios econômicos, que incluem a contrapartida do setor privado (dono da faculdade) para o SUS. Mas quando eu penso nas instituições "P"ilantrópicas espalhadas por aí eu fico com mais medo e decido ir para o próximo passo.

2) O "segundo ciclo" da formação médica: essa até parece uma boa idéia a princípio, né? Pelo menos se você defende o serviço civil obrigatório. Os caras foram ninjas, vamos reconhecer: empurraram goela abaixo o serviço civil travestido de formação médica, e com isso conseguiram inclusive abocanhar as faculdades privadas! (sim, porque o modelo do servico civil obrigatório era para profissionais oriundos de faculdades públicas). Bem, eu não defendo serviço civil obrigatório, eu defendo liberdades. Se o governo cria um bom programa de captação de profissionais ele não vai precisar obrigar ninguém a ir. Se precisa obrigar, é porque não é grande coisa.
Mas atenção para o detalhe: os dois anos deste segundo ciclo consistem em "estágios" na atenção básica e na urgência/emergência. Não por acaso, as áreas com maior demanda dentro do SUS. Ou seja, o segundo ciclo pode até soar como uma formação direcionada para as necessidades da população, mas não deixa de ser uma estratégia para arrumar mão de obra barata. Como funciona com as residências hoje: os residentes tocam os grandes hospitais públicos desse país, todo mundo sabe disso. Nas UBS e UPA, isso vai ser feito por criaturas no limbo: nem médicos formados, nem residentes. Mas espere! Estes dois anos poderão ser usados para descontar tempo numa futura residência médica! Como assim, Bial? Esse negócio ainda vai repercutir muito, tá muito incerto, mas como só vai acontecer em 2021...=(
De toda forma, uma excelente notícia: é o fim do Medcurso! \o/\o/\o/\o/
O problema é que parece um golpe fortíssimo nas Residências em Medicina de Família e Comunidade...

3) Editais de "chamada nacional de médicos": aqui foi a maior recuada. Inicialmente eram 6000 cubanos, depois disseram que não, que seriam portugueses e espanhóis...agora será uma chamada inicialmente para brasileiros, seguida de uma segunda chamada para brasileiros formados fora do país que não revalidaram o diploma (olha o trem da alegria dos brasileiros formados em Cuba e Argentina...o da Bolívia se ferraram porque lá tem menos médicos por habitante que no Brasil), e uma terceira chamada para estrangeiros. A desculpa de não revalidar permanece: é a maneira de segurar os gringos nos locais estratégicos, o que é conversa mole pois outras coisas poderiam ser usadas: custeio da burocracia para revalidar o diploma em troca destes contratos no interior, por exemplo. Mas mesmo que aceitemos a desculpa, vale perguntar se os benefícios compensam os potenciais prejuízos. Bem, quem for vai receber 10 mil na conta pagos pelo MS (o que evita os calotes das prefeituras, boa!), além de moradia e alimentação (detalha isso aí, Padilha, senão vai ter nego em acampamento do exército) e uma ajuda de custo para se estabelecer no local que tem valor variável de acordo com a proximidade do fim do mundo que o local escolhido tiver. Parece até um princípio de Carreira de Estado para Médicos, a diferença é que não tem carreira: as vagas são de no máximo 3 anos, após este tempo o camarada precisa revalidar e seguir a vida se quiser ficar aqui. Não vou repetir o que já falei em outras postagens sobre o que realmente atrai médicos para o interior, mas não dá pra dizer que não é uma proposta mais atrativa do que o que temos hoje. Tipo, eu, uns 6 ou 7 anos atrás iria facinho facinho. Mas a questão é: é de médicos como o que eu era 7 anos atrás que o interior desse país precisa?
Pra fechar esse assunto, um outro ponto: se a seleção das cidades for feita nos moldes do Provab (o que está parecendo), não corrigiremos a distorção da distribuição (como o Provab falhou em fazer). Só vai dar certo se priorizarem de fato o interior, as cidades menores em relação às capitais. Porque no Provab acabamos com médicos direcionados para Recife, enquanto municípios do interior não tiveram ninguém. Será que uma base estadual resolveria? Pra pensar...

Ao debate.

terça-feira, 25 de junho de 2013

Dilma e a Saúde

A presidente anunciou na última sexta que iria "trazer de imediato milhares de médicos do exterior para ampliar o atendimento do SUS". Ontem, em reunião com os prefeitos e governadores, ela voltou ao tema, mas falou de forma mais amena, e inserido em outras propostas. Vou listá-las abaixo, e comentar uma por uma.

1) Ampliar a adesão dos hospitais filantrópicos ao programa que troca dívidas por mais atendimento
2) Incentivar a ida de médicos aos locais que mais precisam
3) Medidas para melhorar as condições físicas da rede de atendimento
4) Ampliação das vagas em cursos de medicina (11.447 novas vagas) (*até 2017)
5) Ampliação da formação de especialistas (12.376 novas vagas de residência) (*até 2017)

Então vamos lá, não necessariamente na ordem de apresentação:

- Hospitais filantrópicos: o programa é bom, mas muitas vezes os serviços oferecidos não se encaixam nas prioridades do sistema. Por exemplo, vamos supor que um hospital filantrópico tenha dívidas, e uma forte tradição em serviços de cardiologia. Por incrível que pareça, não temos necessidades grandes em todas as especialidades. Vamos supor que neste determinado local a necessidade de cardiologistas na rede do SUS esteja atendida com o que já existe na rede. Se o hospital só pode oferecer isso, será aceito, privilegiando o pagamento da dívida em relação às reais necessidades do sistema? Não estou acusando a proposta de fazer isso, só estou fazendo um alerta sobre problemas na execução. Se hospitais tem dívidas, elas devem ser pagas. Ponto. Se a oferta de serviços for compatível com as necessidades, ótimo, se não, que as dívidas sejam pagas de outra maneira. Até porque tem uns "filantrópicos" (com aspas mesmo) por aí que não costumam ter muito problema com dinheiro...

- Ampliação da formação de especialistas: a ampliação das vagas de residência com o objetivo de zerar o déficit para os recém-formados é muito boa, até porque vai permitir que em médio prazo a gente possa exigir residência médica para qualquer médico no SUS, o que só vai trazer benefícios à população. Mas fica uma grande pergunta: quantas vagas para cada especialidade? De novo, as necessidades da população devem ser consideradas. Países que buscam ter sistemas universais centrados na Atenção Primária (como é o caso do Brasil, pelo menos no papel e na cabeça de muita gente) necessariamente precisam direcionar a formação de especialistas para os que preencham estes serviços. Deveríamos ter 30, 40% das vagas de residência médica para formar Médicos de Família e Comunidade, hoje não chegamos nem a 5%. Outras especialidades sofrem com falta de médicos, como a psiquiatria, a neurologia, a ortopedia. Se a ampliação de vagas for pra atender a estas necessidades, ótimo. Se não for orientada por isso, é um tiro na água.
E outra coisa, a residência médica é reconhecidamente um dos grandes fatores relacionados à fixação de médicos. Então essas vagas terão que ser criadas no interior do país. O que exige preceptores de residência, estratégias de educação à distância, integração com universidades, fortalecimento de unidades de saúde+ensino...

- Ampliação das vagas em cursos de graduação em medicina: é óbvio que precisamos de mais médicos, mas formá-los sem uma política de interiorização é igual a acentuar os problemas de concentração que já temos hoje. Estas vagas devem ser criadas preferencialmente fora dos grandes centros urbanos. Isso significa uma necessidade enorme de investimento em universidades que atuem em cidades menores. E como isso vai ser feito? Queria muito saber, pois a carreira universitária ainda é pouco atrativa para médicos por causa principalmente da remuneração/dedicação exclusiva. Algumas universidades federais inclusive já superam este modelo, mas ainda falta muito para pensarmos em uma política real de interiorização da graduação em medicina.

- Melhoria da estrutura física: o governo já tem um programa bem interessante de reforma e construção de unidades de saúde da família, que precisa apenas ser ampliado ($$$$) e ter sua execução fiscalizada mais de perto. Uma alternativa seria deixar isso com os estados, pois atualmente o MS libera o dinheiro direto para os municípios e depois não tem perna pra acompanhar a execução, enquanto os estados ficam meio sem o que fazer no processo. Se a liberação de recursos fosse vinculada à adesão estadual (com aporte de recursos por parte do estado também) poderíamos ter mais agilidade na execução, mais recursos disponíveis e projetos mais próximos de um padrão regional. Essa medida depende muito da vontade política e capacidade de articulação com os municípios e estados.

- E por último (numa tentativa de segurar os leitores até o final...) vamos falar do incentivo à ida dos médicos para os locais que mais precisam. O governo já recuou várias vezes: antes eram 6 mil médicos cubanos, depois a prioridade virou Portugal e Espanha e o número sumiu, até que agora dizem que as vagas serão oferecidas primeiramente aos brasileiros, e quando vierem estrangeiros passarão por uma espécie de avaliação. O governo acerta quando aponta que precisamos de médicos (ao contrário das entidades médicas, que se baseiam no argumento de que "temos o dobro de médicos preconizado pela OMS", o que é mentira porque a OMS jamais se pronunciou em relação a um número mágico, recomendando análises de necessidades e estruturas locais para se chegar ao número para cada país). Mas ao apresentar mais números, o governo se perde, porque tenta justificar a vinda de estrangeiros pelo argumento de que o percentual de médicos estrangeiros no Brasil em relação ao total de médicos é pequeno em relação a outros países como Inglaterra, Austrália, Canadá e etc (mas não menciona que nesses lugares a revalidação do diploma é exigida, ao contrário do que querem fazer aqui com as chamadas autorizações especiais).
Mas pra mim o pior foi ler o seguinte: "O médico estrangeiro terá uma autorização especial para atuar somente em áreas prioritárias e só poderá exercer a atenção básica (ou seja, ele não vai poder realizar procedimentos mais complexos como cirurgias, por exemplo)". Essa é de matar. Primeiro porque médico com atuação limitada é "meio-médico", e não é disso que o Brasil precisa. Segundo porque não reconhece a extrema complexidade que envolve o trabalho de um médico de família, e o coloca como um profissional limitado, simples. A Atenção Primária, exatamente por se propor a cuidar das pessoas e resolver pelo menos 80% dos problemas apresentados pelas pessoas é um cenário bastante difícil, e é onde deveriam estar os melhores médicos, não os "limitados", com "autorização especial". Esse ponto da proposta pra mim equivale a uma cuspida na cara, me desculpem o extremo.

Enfim, entre as propostas da presidente as que menos me agradam são as da Saúde. A pergunta que me faço é se isso é porque são as piores mesmo ou se é por eu entender um pouquinho do assunto é que consigo enxergar os defeitos. E nesse caso, o que dizer das demais?

segunda-feira, 24 de junho de 2013

Melhorou, Dilma. Mas ainda falta muito.

Como dediquei um post ao pronunciamento da presidente Dilma (sim, eu vou continuar chamando-a de presidente), acho que fico com a obrigação de comentar os desdobramentos. Pois bem, hoje ela fez um discurso de abertura na reunião com os governadores e prefeitos das capitais onde lançou mais propostas. Então vamos lá.

Primeiro, dizer que é bom ouvir a presidente se manifestar publicamente com frequência. Acho que Dilma fala muito pouco, entendo que o tipo dela é o de gestora que não perde tempo com marketing (aham), mas ela é a comandante da barca, eleita por um caminhão de votos, e a população PRECISA ouvir mais o que ela acha sobre as coisas mais importantes relacionadas ao país.

Segundo, dizer que acho que ela se tocou que a manifestação nas ruas dá a ela um belo suporte político pra lançar propostas mais arrojadas. Isso é bom. E me parece (espero que mantenha a opinião) que ela tem mais coragem do que Lula (que tinha mais prestígio e mesmo assim não fez esse tipo de enfrentamento).

Voltando ao pronunciamento, ela fez um blábláblá inicial e depois lançou cinco propostas. A primeira: um pacto pela responsabilidade fiscal, estabilidade econômica e controle da inflação. Nem ela falou muito sobre isso, e nem tem muito o que falar. Ou tem? O que significa este pacto? Significa que todos se comprometem a não estourar os orçamentos, mas é só isso? Deviam ter proposto este pacto aos que planejaram e executar as obras da Copa (que só pra lembrar, tá custando o mesmo que as três últimas somadas).

A segunda proposta se divide em três: um plebiscito para autorizar uma constituinte exclusiva para a reforma política, a classificação da corrupção como crime hediondo e o cumprimento da Lei de Acesso à Informação. A idéia do plebiscito é sensacional, pois dá legitimidade à briga, enquadra e joga a batata quente na mão do Congresso (que não vai ter peito pra recusar) e pode gerar a Reforma Política, que deve ser menor do que precisamos, mas mesmo assim melhorar muito as coisas. A história da corrupção como crime hediondo nem é nova mas estava meio "esquecida" no Congresso e o momento político é perfeito para relembrá-la. Sobre a Lei de Acesso à Informação, vamos ver o que acontece. O próprio Palácio do Planalto já tinha anunciado que não iria mais divulgar as despesas com viagens da presidente, mas acabou mudando de idéia. Ainda bem.

A terceira proposta é a da saúde, e eu vou falar especificamente sobre ela amanhã, porque parece que o ministro Padilha vai divulgar algumas novidades amanhã então eu aproveito pra analisar o pacote todo e comentar aqui.

A quarta proposta é sobre transporte público, e envolve mais investimentos (50 bilhões! De onde saiu isso?), desoneração para baratear passagens e a criação de um Conselho Nacional de Transporte Público. Essa proposta foi excelente, sintonizada com o que desencadeou o movimento das ruas e sensível às necessidades da população. Só podia rebatizar este conselho, em vez de "Transporte Público" chamar de "Mobilidade Urbana", pois assim inclui ciclovias/ciclofaixas, ruas exclusivas para pedestres e outras coisas. Mas beleza, a essência da discussão deve estar lá então não tem problema.

E a quinta proposta é a da educação, onde ela repetiu o que tinha dito no pronunciamento do dia 21/junho.

O que eu achei no geral? Melhorou bastante. Mostrou coragem. Quando alguma coisa contradiz o vice fisiologista e coloca gente como o Serra pra fazer crítica vazia a tendência é que o negócio seja bom. Ainda mais quando lideranças da oposição passam recibo do enquadramento. Só falta alguém convencer ela de que o Padilha tá viajando na maionese e não tá passando os dados completos pra ela (ou alguém diferente do ministro, porque sei lá, né?) e assim induzindo decisões erradas. Se ela continuar evoluindo assim é capaz até de me convencer a votar nela ano que vem (dependendo das opções, óbvio).